O Cântico dos Cânticos

Coluna de Amala Oliveira

3 MIN DE LEITURA | Revista 50

A Voz do Espírito Santo

Caminhando no bosque sinto o espírito do Veado Branco ao admirar as gemas que brotam dos carvalhos, a pujança viril que grita desejo em todas as direcções. Aqui e além vislumbro pequenos montículos verdes pintados com florinhas brancas e amarelas, pequeninas e tão felizes! Oiço os seus risinhos, as suas conversas de flores pré primaveris, cheias de certezas fantasiosas da vida, como as narrativas de amor sonhadas por todas as meninas pré adolescentes. 

Os pés afundam na lama aqui e além e as pedras estão muito satisfeitas, gloriosas com as suas coroas de musgos. Foi um bom inverno.

Passo de mansinho pelo ninho da senhora víbora sabendo que esta vizinha ainda dorme o sonho das justas e desejo-lhe um bom despertar. Lembro-me de em criança ver na igreja as imagens da Nossa Senhora a pisar uma serpente, com a lua junto a si, e rio-me de forma cúmplice levando os olhos aos céus.

Em casa vivia uma contradição curiosa pelas mãos da minha mãe que rezava responsos e tirava cobrantos com Deus e Diabo misturados na mesma frase, queimava enxofre e ervas enquanto rezava devota a uns santinhos específicos.

Hoje, entendo o sincretismo, a força da Fé e o porquê da minha feroz rebeldia adolescente.

Aquando a minha doutrinação católica forçada (sim porque nunca me pediram a opinião ou permissão) os conceitos dogmáticos que mais me marcaram foram o Espírito Santo e as labaredas místicas que, ao cair na cabeça de alguns, os faziam falar línguas estranhas.

Durante muito tempo procurei pelo tal Espírito, até que um dia Ela me falou. A Mãe, a grande Mãe Natureza, a terceira e inominada parte da Santíssima Trindade. Pois de onde foi parido o Filho senão Dela? Quando o entendimento se deu, tudo à minha volta mudou. As noções de realidade, as perspectivas humanas, as filosofias espirituais, a própria concepção de mim mesma. Tudo foi remexido, revogado, perspectivado.

De repente, Ela estava em todo o lado, sempre esteve, a comunicar com quem tem ouvidos para ouvir e olhos para ver. Mãe paciente e compassiva, implacável e brutal também. E finalmente encontrei um lugar, havia uma referência divina, sagrada e profundamente espiritual para tudo o que eu tinha dentro, um espelho-padrão do que eu, na minha adolescência rebelde, sentia de contradições e possibilidades em corpo de mulher-menina. Encontrei a Deusa.

 

Quando foi que nos separaram da Mãe Terra Natureza Sagrada, em glorificação do Pai que está no Céu? Porque foi que passámos a exaltar a morte em vez da vida? O sofrimento em lugar do prazer? “Pelo teu pecado, mulher, parirás com dor…”  

Imbuída de Kali (sei-o agora, anos volvidos e muitas jornadas feitas) procurei-A em todas as fontes a que conseguia pôr mão, descortinei-Lhe as caras, os múltiplos nomes, os atributos culturais, farejando que nem uma loba faminta tudo o que me negaram. E um dia, em espantosa iluminação, encontrei-A também dentro de mim.

Diz o padre Fontes que a mulher tem o poder de abençoar e amaldiçoar, curar e “ver”.

Quem é mulher que sangra sabe o que é receber “labaredas” dentro e “falar línguas estranhas” em momentos de aflição ou raiva onde a intuição nos grita respostas dentro do corpo, como vocábulos ininteligíveis cheios de confirmação certeira.

Pudéssemos nós permitir-nos mais vezes ouvir as vozes do corpo e criar o nosso dicionário de significados pessoais, sem necessidade de padre, mestre ou tradutor e certamente as decisões colectivas que a todos e todas tocam, oprimem ou libertam seriam muito diferentes.

Também sabemos reconhecer o Espírito (santo ou nem por isso) no olhar de alguém, mesmo aquelas de nós que estão demasiado formatadas pelo patriarcado – apenas fomos desacreditadas das nossas capacidades de discernimento e afirmação, toldadas e denegridas para a subserviência. As filhas de Eva.

Oiço o trinado do Tordo e olho para cima, esperançosa de o encontrar a comer Visco. Não vi nem um, nem outro, mas saúdo o Espírito de ambos, expressões santíssimas d’Ela.

Nesta Primavera que desponta, reverencio o Espírito Santo na sua expressão mais pura em cada flor, fonte e nos bichos todos, dos maiores aos mais pequenitos.

E rezo fervorosamente para que cada um e cada uma de nós encontre o Espírito Santo livre, indomável, sábio e poderoso que em si habita e enleva.

E viva a revolução!

Para citar este artigo:

OLIVEIRA, Amala. A Voz do Espírito Santo. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-50/a-voz-do-espirito-santo/, número 50, 2024

 

Imbuída de Kali (sei-o agora, anos volvidos e muitas jornadas feitas) procurei-A em todas as fontes a que conseguia pôr mão, descortinei-Lhe as caras, os múltiplos nomes, os atributos culturais, farejando que nem uma loba faminta tudo o que me negaram. E um dia, em espantosa iluminação, encontrei-A também dentro de mim.

Amala Oliveira

Amala Oliveira

Sacerdotisa e Erotisa, Sexological Bodyworker e Sacred Sex Educator

Sou Sacerdotisa e Erotisa, Sexological Bodyworker e Sacred Sex Educator, pioneira da Sexualidade Sagrada em Portugal, vivendo-a e partilhando-a como um caminho de devoção, cura e revelação.
Investigo o Paganismo e Xamanismo Ibéricos, tendo sido iniciada na Bruxaria Tradicional Portuguesa pela minha mãe. Sou Buscadora de Visão, Temazcalera e Guardiã de Fogo Sagrado pela linhagem da Abuela Margarita.
Herbalista aprendiz do mestre alquimista Juan Plantas nas plantas mágicas e medicinais da Península Ibérica, sou a fundadora do projecto SAGRAR e autora do Oráculo dos Animais da Península Ibérica.