Ecoespiritualidade

Coluna de Jorge Moreira

3 MIN DE LEITURA | Revista 50

A Despedida

 

Um canto radioso move os pássaros

Quando entramos no jardim, tu e eu!

(…)

Enlaçados no amor, sem tu nem eu,

Livres de palavras vãs, tu e eu!

Bebem as aves do céu a água doce

De nosso amor, e rimos tu e eu!

Estranha maravilha estarmos juntos

 

Excerto de ‘A Sombra do Amado’ de Jalâl ad-Din Rûmî

 

Uma atenção especial às experiências da vida revela a uma série de eventos anotados como serendipismo. Episódios de um suposto acaso, que nos fazem pensar, sentir profundamente, dar sentido à existência, transformar-nos e até poder alterar o rumo da nossa vida. Vou aqui revelar um destes eventos que ainda hoje ressoa em mim.

No local onde habito atualmente, embora já ameaçado pela urbe cinzenta, ainda persiste uma vasta mancha verde colorida pelo canto das aves. Entre outra fauna e flora presentes, são muitas as espécies que partilham habitat com a minha família humana. Com maior expressão podemos encontrar o melro, o pisco-de-peito-ruivo, o chapim real, o verdilhão, o gaio, a alvéola, a pega-rabuda, o pombo-torcaz e a rola-turca. Algumas rapinas sobrevoam em círculos e as suas crias fazem-se ouvir de forma incisiva, assim como a ‘perfuradora’ do pica-pau-malhado sobre os troncos das árvores. Na primavera chegam os tordos, que se juntam ao melro e ao pisco-de-peito-ruivo como solistas na vasta orquestra natural. Nas noites quentes do verão o noitibó é presença assídua e o mocho-galego surge com alguma regularidade. Mas, nem sempre foi assim. A diversidade da avifauna tem aumentado devido ao crescimento da diversidade da flora, especialmente com a substituição da monocultura de eucaliptos por espécies nativas ou associadas, tais como carvalhos, sobreiros, pilriteiros, azevinhos, medronheiros, bétulas, castanheiros e áceres.

Partilho com a avifauna frutas e bagas que produzo entre frutíferas e autóctones, embora poucas são as cerejas e os medronhos que sobram para consumo humano. As bagas de azevinho também não chegam ao Natal. Mas é uma alegria contemplar o saltitar de um grupo de chapins-reais entre o salgueiro e a oliveira, observar os melros irrequietos a revirarem a terra à procura de alimento ou ver o gaio a ‘furtar’ bolotas dos carvalhos. Contudo, há uma espécie que pela sua presença constante e beleza do seu canto tem feito as delícias da casa – o pisco-de-peito-ruivo.

Ao fim de uns anos de intensa transformação local, as flores silvestres começaram a dar a sua graça. As árvores e arbustos ainda detinham pequeno porte, mas já sustentavam os primeiros piscos que surgiam empoleirados nos seus galhos. Um indivíduo desta espécie começou a marcar a sua presença diária. Entre ramos e estacas, sentia-se a alegria do seu canto. Muitas vezes parecia que me fitava e isso deixava-me alguma inquietude alegre e questionava-me: será que ele está mesmo a dirigir-se a mim?

Ora, a minha própria natureza sempre soube respeitar a Natureza. As Ciências do Ambiente ajudaram-me a saber cuidar Dela. Mas, faltava trilhar na racionalidade aquilo que a intuição já alcançava. É aqui que surge a importância da Ética Ambiental, como instrumento reflexivo sobre a nossa relação com a Natureza. Esta disciplina começou a emergir em mim e abriu-me a universos de parentesco com toda a vida. O pisco-de-peito-ruivo que eu via e ouvia sem gaiola e que me acompanhou durante uns cinco anos, já não era para mim uma simples ave, mas um familiar próximo.

Na altura, trabalhava em casa, normalmente de porta aberta para o jardim, onde podia ser afagado pelo perfume sonoro da Natureza. A certa altura vejo que o pisco se aproximava da porta. Achei estranho, já que sempre mantivemos respeito pela distância física e a liberdade do outro. Aproximei-me dele e senti um olhar cheio de ternura. Pego e coloco-o na palma da minha mão. Ele fica em pé, firme. Não foge. De repente, o olhar dele fez-me sentir um calafrio. Era uma despedida! Não queria acreditar e coloquei-o no chão junto a umas ervas silvestres, para ver se reagia, mas ficou imóvel. Acaricio com a minha mão sobre a sua cabeça. Pouco depois começa a tremelicar das pernas. Pego nele novamente e coloco-o na minha mão. Ele deita-se… parte em espírito, voando para a Natureza Oculta, deixando o seu corpo ainda quente entregue a mim.

Ainda abatido pela perda física do ente querido, sepultei-o no meu jardim, em memoria à sua existência.

Já passaram uns bons anos e ainda vejo os seus descendentes felizes a cantar o maravilhoso cântico do pisco-de-peito-ruivo. Hoje estou diferente, porque, também, tive a felicidade de o ter conhecido. O pisco deu-me certezas de como é possível comunicar e viver em harmonia e alegria com muitas das outras espécies. Fez-me ver que o canto das aves faz toda diferença no nosso mundo e que sem ele (o meu) mundo seria seriamente abalado.

Para citar este artigo:

MOREIRA, Jorge. A Despedida. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-50/a-despedida, número 50, 2024

Já passaram uns bons anos e ainda vejo os seus descendentes felizes a cantar o maravilhoso cântico do pisco-de-peito-ruivo. Hoje estou diferente, porque, também, tive a felicidade de o ter conhecido. O pisco deu-me certezas de como é possível comunicar e viver em harmonia e alegria com muitas das outras espécies. Fez-me ver que o canto das aves faz toda diferença no nosso mundo e que sem ele (o meu) mundo seria seriamente abalado.

Jorge Moreira

Jorge Moreira

Ambientalista e Investigador

Licenciado em Ciências do Ambiente, Minor em Conservação do Património Natural, mestre em Cidadania Ambiental e Participação, pela Universidade Aberta, e Doutorando em Sociologia pela Universidade de Coimbra. É bolseiro FCT e investigador do Centre for Functional Ecology, Science for People & the Planet da Universidade de Coimbra.
É vice-presidente da FAPAS - Associação Ambientalista para a Conservação da Biodiversidade; dirigente da Sociedade de Ética Ambiental, dos movimentos cívicos Alvorecer Florestal e Aliança pela Floresta Autóctone.
É autor de vários artigos dedicados ao ambiente e voluntário em inúmeras ações de defesa, conservação, promoção e recuperação do património natural.
Tem desenvolvido investigação nas áreas da Ética Ambiental, Educação Ambiental, Sustentabilidade, Alterações Climáticas, Ecologia Profunda e Ecologia Espiritual, onde tem realizado conferências e promovido os temas.

shakti@sapo.pt