Mitologia Criativa
Coluna de Élia Gonçalves
4 MIN DE LEITURA | Revista 49
Tudo o que é chão e colo
Na verdade, vivemos com mistérios demasiado maravilhosos para serem entendidos.
Como pode a erva ser nutritiva na boca dos cordeiros.
Como podem os rios e as pedras estar em permanente aliança com a gravidade enquanto nós ansiamos elevar-nos.
Como podem duas mãos ao tocar-se firmar laços que nunca mais se quebram.
Como é que as pessoas, vindas do prazer ou das cicatrizes dos golpes, chegam ao conforto de um poema.
Deixem-me manter sempre a distância dos que pensam ter todas as respostas.
Deixem-me ficar na companhia dos que dizem “Olhem!” e riem de assombro e inclinam reverentes a cabeça.
Mary Oliver
Uma mulher extraordinária, num dos grupos que acompanho, partilhou há uns dias que, em tempos, assustava-a o arquétipo da Velha. Que sonhava que esta subia as escadas do prédio onde vivia, entrava no seu quarto e arrancava-lhe o coração. Segundo esta mulher, a velha era “lenta, mas demovível, os olhos meio cegos, mas uma visão sem limites, umas mãos ossudas, mas certeiras, e com meia dúzia de cabelos crespos e secos de tão velhos…” Nesta mesma partilha, ela diz saber agora, que a velha não estava ali para a matar, mas para acordar a sua capacidade de sentir.
Cristina relaciona-se com as pedras dos lugares onde nasceu, e deixa que estas as guiem para memórias não palpáveis, somente símbolo e sensação. Diz encontrar nestes lugares antigos o grande mistério e o colo da própria vida. Leio a sua partilha com o coração cheio e destroçado. Porque me emociona e me dói, e nem tenho palavras que me expliquem o porquê de tanta dor. Ela simplesmente permanece.
Outra mulher fala-me dos fios. Da textura dos fios e do movimento ritmado e intrincado do crochet, que se vai construindo e reconstruindo num mantra tão próprio que a reconstrói a ela também. Diz-me que os fios são chão, e que muitas das suas escavações são-lhe contadas pela relação com o fio. Fala-me também dos lugares que desperta em si e de dragões internos que necessitam de cuspir fogo e atravessar florestas de espinhos. Laila, como me apetece chamar-lhe, é intensa e épica. Toda ela é símbolo, mito e estória e, por vezes, os lugares de que ela fala, vejo-os e sinto-os como meus. Emociono-me com as suas palavras, que me relatem estórias que me foram contadas através dos tempos, metafóricas, cíclicas e intemporais.
Na verdade, ressoam-me todas as paisagens destas mulheres e de tantas que vejo a escavarem-se até à alma. Elas ecoam-me nas minhas próprias experiências. O mistério e vida de que falam, ancoram-me no trabalho com as ervas, com as estórias e na minha relação com as árvores. Estas também são chão e, como a Velha de Cristina, arrancam-me o coração a cada passo, trazendo-me para a estranha sensação de amor e dor, de abertura a uma ferida quase mortal e a uma noção de casa e pertença que me acolhe.
Por vezes, quando partilho com algumas mulheres estes sentires, chegamos a um espaço misterioso, encantado e assustador. A ideia de que este sítio, onde as pedras, as estórias, as árvores e os fios são chão e colo, parece-me mais real do que a vida mundana que nos atira para a mente, o pragmatismo e as tarefas úteis da vida.
Pergunto-me se me perco demasiadas vezes nesses lugares, onde as árvores que me arrancam o coração, as estórias que me raptam e um mundo subtil que me invade, me soam reais e tudo o resto uma fantasia. Onde a vida chamada “adulta” me chega, em tantas ocasiões, como uma alienação profunda de tudo aquilo que me torna humana.
Talvez seja o paradoxo, a complementaridade, a sobreposição destes dois mundos, o lugar certo para caminhar e pertencer em verdade. Para escutar o invisível e as teias que se perderam na chamada evolução do mundo. Acredito que existe um espaço interno capaz de abarcar o paradoxo dos mundos como um só. Sem divisão, sem dualidade.
Mas quando as tarefas, a mente linear, a máscara da utilidade e a esterilidade dos dias se tornam demasiado intensos, pesados e me apartam do sentir, do respirar, de caminhar devagar e em contacto com as relações que a vida me traz, preciso do mundo mais que humano como de oxigénio.
Ao mesmo tempo, reconheço que, por vezes, pertencer a um mundo subtil, orgânico e permeável, onde a humanidade pura e simplesmente não é o centro da vida, será tão assustador e doloroso quanto a Velha se mostrava um dia, para a Cristina.
Um mundo onde os ossos, as pedras e os riachos cantam, devolvem-nos estórias de pertença, raptos e violações. Arrancam-nos o coração através do sentir, da dor do mundo e da devastação das florestas e da nossa identidade.
Fugimos das estórias e das marés como da alma, pois os lugares profundos compõem-se de dor e êxtase, de memórias que não podem ser trazidas com palavras. Memórias aquáticas, celulares e ancestrais, misteriosas como o Inverno que tudo gela e de onde brotam as flores, por vezes, mesmo no meio da geada e da quietude.
Talvez nestas flores de Inverno, na flor de amendoeira, no narciso e na pervinca, encontremos candeias na encruzilhada. Saber permanecer na geada. Abrir o peito. Assombrar-nos com a Vida. Encarar a Velha que caminha e deixar que o seu sopro nos renove o coração, numa batida distinta.
Para citar este artigo:
GONÇALVES, Élia. Tudo o que é Chão é Colo. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-49/tudo-o-que-e-chao-e-colo/, número 49, 2024
Uma mulher extraordinária, num dos grupos que acompanho, partilhou há uns dias que, em tempos, assustava-a o arquétipo da Velha. Que sonhava que esta subia as escadas do prédio onde vivia, entrava no seu quarto e arrancava-lhe o coração. Segundo esta mulher, a velha era “lenta, mas demovível, os olhos meio cegos, mas uma visão sem limites, umas mãos ossudas, mas certeiras, e com meia dúzia de cabelos crespos e secos de tão velhos…” Nesta mesma partilha, ela diz saber agora, que a velha não estava ali para a matar, mas para acordar a sua capacidade de sentir.
Élia Gonçalves
Colunista e Autora regular da Revista
Psicóloga
Terapeuta Transpessoal
Sub-Direção EDT – Escola Transpessoal
Contadora de Estórias
Mitologia Pessoal Criativa
Autora do Mito de Ophídia
elia.gonçalves@escolatranspessoal.com