artigo de Maria José Pessoa

Transgressão

ou não sou nada disto que eu sou – parte 1

2 MIN DE LEITURA | Revista 49

O Jardim

A dúvida é o sítio onde escrevo.

A dúvida é o risco de sermos corridos do jardim onde brincávamos, na infância, pela dona do rés-do-chão do prédio. É saber dessa tão evidente possibilidade e manter o desejo de viver o gozo de respirar junto à terra, por baixo do mar de hortênsias, num refúgio-tenda-abrigo verde com cheiro de vida.

O risco impunha o silêncio. A alegria fazia-nos rir. O riso levava à expulsão.

Na dúvida, corremos o risco e dobramos o riso.

A dona do jardim não duvidava que ele era dela. E ele era nosso. Ainda hoje é nosso.

A Mata

Nem pensar.

Nem pensar em descer a rua e entrar na mata.

A mata era o perigo (outro risco, dúvida). Na mata havia homens (podia haver homens) que faziam mal (podiam fazer mal) às meninas, se desobedecessem e entrassem na mata.

A mata era o que mais nos apetecia.

Não pensávamos senão na forma de entrar na mata e conhecer os seus mistérios.

Estava na nossa natureza.

Pensávamos. Queríamos.

Às vezes, íamos. De coração acelerado. Mãos húmidas. Pupilas dilatadas.

Depois, um de nós pregava um susto. Do susto ao riso era um pulo.

E todos voltávamos à cidade (onde, sem dúvida, ninguém faz mal a meninas obedientes).

A Morte

Iam morrendo pessoas. Não percebíamos para onde iam, nesse morrer. Agora sabemos que ninguém sabe.

Avós, ou até um pai ou uma mãe, colegas, vizinhos, amigos. Ouvíamos dizer que a morte dos mais jovens era mais injusta e era difícil compreender o que isso queria dizer. Porque não podíamos fazer perguntas e nem sempre a infância era um lugar feliz. Não era raro que desaparecer nos parecesse uma boa solução.

Velórios e funerais eram cerimónias interditas a menores. (Só os maiores podiam sofrer.) Não víamos caixões nem os nossos mortos dentro deles. O desaparecimento era abrupto e duplamente injustificado.

Entretanto, a vida continuava a perseverar no seu ser, fazendo bebés nascer, fazendo voltar a Primavera, o que nos obrigava a agradecer o mistério da existência.

E crescíamos.

A Interdição

– Mas, olha, nunca escrevas sobre a nossa família!

(O que significava “nunca te atrevas a escrever sobre a nossa família!”)

– Tens jeito, está visto, fazes boas redações na escola, escreves poemas sobre todos os temas que eu te dou, mas deves apenas contar histórias (estórias); nunca falar da nossa intimidade. Há coisas que têm que ficar entre nós, só entre nós, os do nosso sangue!

Nasceu nesse momento a cisão. O bloqueio. O desencontro comigo mesma.

Menina e moça seria, mas já sabia, pressentia que se escreve para contar segredos.

O meu irmão mais velho acabara de me proibir de ser quem eu era.

Para citar este artigo:

PESSOA, Maria José. Transgressão. https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-49/transgressao-ou-nao-sou-nada-disto-que-eu-sou-parte-1/, número 49, 2024

Avós, ou até um pai ou uma mãe, colegas, vizinhos, amigos. Ouvíamos dizer que a morte dos mais jovens era mais injusta e era difícil compreender o que isso queria dizer. Porque não podíamos fazer perguntas e nem sempre a infância era um lugar feliz. Não era raro que desaparecer nos parecesse uma boa solução.

Maria José Pessoa

Maria José Pessoa

Professora de Filosofia,

Professora de Filosofia, mãe de três filhos adultos, mulher preocupada com o mundo e que
escolhe fazer o que pode para que todos respirem melhor