O Canto do Verbo

Coluna de Ana Alpande

4 MIN DE LEITURA | Revista 49

Sonhar como Um Animal

Estes últimos dias tenho avistado com frequência uma águia de asa redonda pertinho de casa. Costuma pousar num poste de madeira que auxilia no sustento da cerca do olival vizinho. Sempre que passo por ela levanta voo apressada, poderia dizer que fugindo de mim, mas, na verdade, não sei do que ela foge, se de mim particularmente ou se reage a um reflexo defensivo, instinto desenvolvido geração após geração, no sentido de se proteger do perigo que um corpo do meu tamanho representa. 

Não temos tempo de relação suficiente para que ela saiba, que sou mais que um corpo grande e barulhento, na verdade, também sou pássaro tal como ela, entre muitas outras coisas que vão para além das minhas óbvias duas patas e coluna vertebral erecta. Se formos a julgar tamanhos, o pássaro que sou é bem mais pequeno que a águia que ela é.

Quando em crise de ansiedade, é uma pena de águia que me guia de volta ao corpo, a  um corpo que respira, que bombeia sangue uma e outra vez, através de um vasto labirinto de veias e artérias, tal como as do labirinto do corpo de uma águia.

A pena da águia lembra-me da minha natureza, esta natureza que sou. Recorda-me quando encontrei o corpo de uma águia de asa redonda caído no chão, espalmado por um carro. Como o colhi e trouxe-o comigo para que me deixasse saber como queria ser honrado. Lembro-me da minha rigorosa obediência às intenções deste corpo, sem questões, sem julgamentos, sem mas…, só lhe pedi uma coisa, uma pena, apenas uma pena desta matéria onde o sangue cessou a sua peregrinação. Sem ter certeza absoluta da resposta, decidi ficar com uma pena apenas se esta se desprendesse por si mesma. Assim foi.

O humano em mim, gerações após gerações, especializou-se em diferenciar a sua identidade da identidade do mundo natural, de tal forma que tal como um cancro invade e explora o nosso corpo carregando a informação genética da não pertença, também nós invadimos os ecossistemas por onde passamos, carregando a informação cultural dessa mesma não pertença. A nossa diferenciação é destrutiva para todos, em especial para nós mesmos.

Nas últimas décadas temos vindo a identificar-nos mais com a tecnologia do que com o que vive e respira tal como nós, afastando-nos do altar da evolução biológica que nos esculpiu, e que continuará a esculpir numa eterna dança da adaptação. Estamos a começar a correr o risco de falar mais com o Chat GTP do que com as águias ou as lagartixas, e uma lagartixa tem tanto para contribuir para esta cultura da pressa e do desperdício.

Quando vou ao encontro da águia vou ao encontro de partes de mim, das quais não me lembro mais. Partes antigas, tão antigas quanto o início da tribo dos voadores. 

Não me lembrar deles não significa que não existam, apenas quer dizer que o contacto consciente ainda não se deu. Mas o meu ofício obriga-me a cultivar diariamente a arte de abrir espaço ao implícito e a não contaminar o emergente com as lentes da consciência. 

Deixemos o emergente emergir, porque ele é a força da vida, nós somos levados para o próximo passo pelo seu abraço. O passo não é nosso nesta relação, pertence à vida. 

Para ir com a vida não é preciso ter consciência do que é ou como é, por mais difícil que seja de acreditar. Antes curiosidade, fé, disponibilidade, abertura e persistência. Aparecer uma e outra vez sem pressa de chegar a lado nenhum.

Não avistava águias assim de perto há muito tempo. Agora vejo esta quase todos os dias, porquê? Não sei, nem me interessa, não desperdiço o nosso contacto com porquês, antes aguço todos os meus sentidos para registar cada pedacinho do momento. Quando me sento pressa neste corpo humano, imagino as plumas sedosas abrirem-se no espaço, tomarem impulso e projetarem-se no ar, com força e precisão, cada vez mais alto, deixando uma mancha creme romper o azul do céu. É só isso que importa, a minha respiração no ritmo do movimento das asas da águia, o peito para fora contra o vento. Saber que existo de muitas outras formas, com…

Sinto nos meus ossos a necessidade de desenterrar os ossos dos meus ancestrais, mas não falo dos homens e mulheres que habitaram esta terra. Falo do Urso pardo, do alce, do lobo e do castor.

Às vezes sonho que sou uma raposa que viaja no tempo, desenterrando esqueletos inteiros, lambendo-os com respeito e carinho, não para os limpar, mas para os louvar, cuspir vida de volta ao material desmineralizado pelo tempo, recebendo de volta a este território, as marcas das suas patas no solo, cheias de orvalho e micro-cogumelos.

Desisti de sonhar o futuro enquanto humana, não adianta. Lá no fundo, tenho sempre uma agenda qualquer. Salvar alguma coisa, mudar ou safar-me a mim e aos meus de um futuro marcado por durezas várias, jamais serei imparcial no que diz respeito ao próximo passo da vida, isto no sentido de sonhar a natureza enquanto natureza. A minha separação é demasiado grande. Por isso, prefiro sonhar enquanto raposa, remembrando os ossos dos nossos ancestrais mais que humanos para que possam devolver ordem às coisas.

Para citar este artigo:

ALPANDE, Ana. Sonhar como um Animal. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-49/sonhar-como-um-animal/, número 49, 2024

Desisti de sonhar o futuro enquanto humana, não adianta. Lá no fundo, tenho sempre uma agenda qualquer. Salvar alguma coisa, mudar ou safar-me a mim e aos meus de um futuro marcado por durezas várias, jamais serei imparcial no que diz respeito ao próximo passo da vida, isto no sentido de sonhar a natureza enquanto natureza. A minha separação é demasiado grande. Por isso, prefiro sonhar enquanto raposa, remembrando os ossos dos nossos ancestrais mais que humanos para que possam devolver ordem às coisas.

Ana Alpande

Ana Alpande

Colunista e Autora regular da Revista

Terapeuta de Trauma, Artista, Astróloga, Contadora de Histórias

A minha missão é dizer não ao desperdício da beleza e procurar contribuir para uma estética que promova a criação de espaços quotidianos que fertilizem o território da Alma.

Actuo como educadora, terapeuta de trauma e facilitadora de grupos terapêuticos de expressão artística e co-regulação emocional.

O principal foco de estudo e reflexão de momento é o trauma individual, transgeracional e colectivo, tendo como pano de fundo a questão do vínculo, nas suas variadas afetações e expressões.

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