Onde mora o coração, histórias e paisagens

Coluna de Ana Sevinate

2 MIN DE LEITURA | Revista 49

Os Sobreiros também Choram

à calêndula, ao sobreiro e a F.

O lugar dos sonhos é aquele onde a calêndula interrompe o cantinho mais escuro e o convida a ficar. O lugar dos sonhos é aquele onde o gelo começa a transpirar. E onde os pingos das águas, do coração, começam a soltar-se em direção a casa.

A calêndula é candeia. É sol-mulher.

Sim, porque as calêndulas também falam.

E o lugar de ficar é aquele onde o sobreiro guarda o altar mais antigo e nos convida a sonhar. O lugar de ficar é aquele onde os primeiros rebentos começam a espreguiçar-se. E onde as raízes, do coração, começam a aninhar-se.

O sobreiro é colo. É homem-lua.

Sim, porque os sobreiros também choram.

E no santuário onde moram a calêndula e o sobreiro, as palavras são benzeduras e as lágrimas são livres. No santuário que é lugar de sonhar, a luz é espevitada e é compassiva. No santuário que é lugar de ficar, a vulnerabilidade é potência e é direção.

– Para que choras? – Falou a calêndula.

– Para poder tocar. – Inspirou o sobreiro.

– Entendo. – Disse a calêndula.

– Para que brilhas? – Chorou o sobreiro.

– Para poder ver. – Expirou a calêndula.

– Entendo. – Disse o sobreiro.

E quando a calêndula fala e o sobreiro chora, todos nós somos vistos e todos nós somos tocados. Em cada recordação dorida, em cada segredo delicado, em cada força calada, em cada voz esquecida.

E quando a calêndula fala e o sobreiro chora, todos nós somos convidados a ver e todos nós somos convidados a tocar. Sendo bálsamo-repouso, sendo canteiro-abrigo, sendo memória cantada, sendo palavra desatada.

E quando a calêndula fala e o sobreiro chora, o encontro dá-se. Naquele lugar onde somos vistos e vemos para além do nosso olhar. À tona da terra. E deixamo-nos levar pelo fluxo íntegro das gotas. Porque uma árvore chorou e um rebento brotou.

E quando a calêndula fala e o sobreiro chora, o encontro dá-se. Naquele lugar onde tocamos e somos tocados para além da nossa ferida. À pele da flor. E sentimos o beijo terno do sol. Porque uma flor brilhou e o gelo derreteu.

Sim, pois quando a calêndula fala e o sobreiro chora, somos lugar de passagem e somos regresso. E então voltamos e ouvimos o sobreiro chorar:

– O abandono já não mora aqui.

Sim, pois quando a calêndula fala e o sobreiro chora, somos húmus e somos ponto de retorno. E então crescemos e ouvimos a calêndula falar:

– A ilusão já não mora aqui.

E, finalmente, o encontro tem lugar sagrado. Lugar no sonho e na raiz. Lugar na partida e na volta. Lugar na despedida e no recomeço. Pois, só assim, o encontro tem lugar no repouso da luz e na vontade da alma. Depois de reconhecidas as dores do abandono e libertas as teias da ilusão. Somos, finalmente, santuário.

– Dás-me uma lágrima? – Chorou a calêndula.

– Todas aquelas que tiveres para derramar. – Respondeu o sobreiro.

E a calêndula, que é cálice, foi tocada e brilhou mais.

– Iluminas-me? – Falou o sobreiro.

– Com todo o reflexo do teu ser. – Respondeu a calêndula.

E o sobreiro, que esperou tanto tempo, foi visto e chorou mais.

Para citar este artigo:

SEVINATE, Ana. Os Sobreiros também choram. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-49/os-sobreiros-tambem-choram/, número 49, 2024

E, finalmente, o encontro tem lugar sagrado. Lugar no sonho e na raiz. Lugar na partida e na volta. Lugar na despedida e no recomeço. Pois, só assim, o encontro tem lugar no repouso da luz e na vontade da alma. Depois de reconhecidas as dores do abandono e libertas as teias da ilusão. Somos, finalmente, santuário.

Ana Sevinate

Ana Sevinate

Psicóloga clínica e psicoterapeuta

Pós-graduada em psicossíntese e em cuidados paliativos. Membro do grupo de trabalho Ecopsicologia Portugal e co-fundadora do projeto Histórias de Raiz. Formadora no curso de doulas de fim da vida. 

Autora do livro Ser Terra: o abraço da Psicologia à natureza, publicado pela Chiado. Tecida por histórias, danças nas pontas dos pés, cores, papoilas aos molhos e folhas de tília.

Consultas de Raiz Online

anasevinate.org
historiasderaiz.pt