O Cântico dos Cânticos
Coluna de Amala Oliveira
3 MIN DE LEITURA | Revista 49
A Escola das Almas Ardentes
Observo o cair da noite dando graças ao dia. Continua a chover e apesar de não ver a lua, sinto o seu movimento crescente dentro do meu próprio ventre e sei que ela, à sua maneira, me observa a mim também.
Mais um bocadinho e juntar-me-ei a ti no templo. Sei que me esperas, relaxado e um bocadinho nervoso – a bazófia masculina da virilidade inabalável não se aplica aos homens sensíveis, despertos para si mesmos e com vontade de aprender.
Termino a ablução agradecendo às oliveiras pelas bênçãos e pelos insights partilhados. São mesmo sábias estas professoras. Tenho-as no apelido e na alma e considero-as como minhas madrinhas. Fadas madrinhas.
Respiro fundo, uma e outra vez, recolhendo em mim a energia deste espaço-tempo liminar. Será uma noite longa.
Afasto os receios de menina-mulher, as sombras que todas temos dentro e que nos acossam a intimidade. Rio-me de mim mesma, tanto caminho feito e a mesma vulnerabilidade.
Ponho os pés ao caminho, tenho ainda de recolher a arruda e o zimbro e o manto da escuridão está a descer rápido. Oiço o regougar da raposa e atiro-lhe um beijo à distância, levando o uivo comigo como um bom auspício.
Pedra, pau, osso e pena. Arruda e zimbro. As ferramentas de trabalho de hoje, para mim mais sofisticadas do que qualquer programa de computador.
Aproximo-me do templo e sinto o cheiro das plantas de defumação, identificando-as no meio das notas de mirra. O meu coração palpita de alegria – a última lição foi aprendida e integrada. Suspiro. Há homens que me dão esperança numa nova Terra.
Agradeço rendida à Deusa pelo caminho que me faz trilhar e por quem me manda ao encontro. Abençoada e emocionada me sinto.
Entro na sala e derreto-me. Tanta dedicação na preparação do espaço… Quanta beleza! Que laborioso cuidado… Saberás tu da absoluta importância de honrar a Terra honrando uma mulher? Uma parte residual de mim continua a duvidar… São muitas, demasiadas as histórias de abandono, traição, violação, sofrimento e humilhação que carrego nas memórias ancestrais do corpo. E nos momentos de maior abertura e entrega ao amor, elas sempre se levantam esperançosas da remissão dos pecados. As lágrimas caem-me e sei que em cada uma delas há a voz de uma avó, de uma antiga que me habita e que, neste instante, se cura um bocadinho com estes gestos de prova de amor.
E começa a sintonia. A dança mágica de acolher e ser acolhida com propósito, ligação de alma, devoção e ternura. Mãos nas mãos, olhos nos olhos. Haverá forma mais sublime de orar?
A cada respiração vamos construindo a teia, tecendo-a com concentração e fervor. Enlaço os feitiços de canto, gemido e urro. Uma a uma vamos entreabrindo as portas do corpo, as janelas do espírito e as pontes cósmicas. Em cada carícia desenhamos os símbolos que só nós conhecemos no deslindar do momento, como a tradução de uma linguagem rúnica.
As Presenças invocadas estão já à nossa volta, abençoando, testemunhado e dançando o crescendo da nossa paixão.
Dentro de mim surgem fragmentos de memória de infância – o cheiro das flores de laranjeira, o pisar uma cobra quando apanhava tomates no quintal, o primeiro beijo. Uma parte da minha consciência retém as imagens mas mantenho o corpo emocional focado na tarefa entre mãos, entre corpos, entre bocas.
Já sinto o zumbido do portal, lá ao longe como um comboio a aproximar-se a alta velocidade. Sei que o sentes também, falamos na telepatia erótica que amplifica campos.
Seguimos com o ritual e reafirmamos a intenção que abre, preenche e sustém os labirintos da mente, do coração e das almas.
Pedra, pau, osso e pena. Arruda e zimbro. Cada elemento a sua função, cada enlaçamento uma nota que se eleva para a sustentação do campo mágico.
Calma, paciência, foco e serenidade no fogo alquímico… É preciso lembrar-te uma e outra vez de manter a chama na temperatura certa do cadinho. Para que esta dança delicada não transborde a água ardente ou queime o elixir que destilamos. Refazemos toque, movimento, respiração, ligação.
O portal abre e por ele deslizamos de mãos dadas a uma multidão de Presenças que nos dão as boas vindas cantando uma canção desconhecida. E nessa sublime Visão entramos na Grande Escola para mais uma lição.
Para citar este artigo:
OLIVEIRA, Amala. A Escola das Almas Ardentes. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-49/escola-das-almas-ardentes/, número 49, 2024
Calma, paciência, foco e serenidade no fogo alquímico… É preciso lembrar-te uma e outra vez de manter a chama na temperatura certa do cadinho. Para que esta dança delicada não transborde a água ardente ou queime o elixir que destilamos. Refazemos toque, movimento, respiração, ligação.
Amala Oliveira
Sacerdotisa e Erotisa, Sexological Bodyworker e Sacred Sex Educator
Sou Sacerdotisa e Erotisa, Sexological Bodyworker e Sacred Sex Educator, pioneira da Sexualidade Sagrada em Portugal, vivendo-a e partilhando-a como um caminho de devoção, cura e revelação.
Investigo o Paganismo e Xamanismo Ibéricos, tendo sido iniciada na Bruxaria Tradicional Portuguesa pela minha mãe. Sou Buscadora de Visão, Temazcalera e Guardiã de Fogo Sagrado pela linhagem da Abuela Margarita.
Herbalista aprendiz do mestre alquimista Juan Plantas nas plantas mágicas e medicinais da Península Ibérica, sou a fundadora do projecto SAGRAR e autora do Oráculo dos Animais da Península Ibérica.