artigo de Sofia Batalha

A Riqueza do Parentesco Selvagem

6 MIN DE LEITURA | Revista 49

Trago hoje o convite de adentrar toda a riqueza do contexto, onde nos encontramos constantemente, permitindo a relação visceral em parentesco selvagem.

Quero começar por trazer uma frase de um autor que gosto muito, Jürgen W. Kremer. Um alemão, que vive nos Estados Unidos e diz assim: “precisamos de nos relembrar como história natural. Temos de nos relembrar como lugar, como estrelas. Precisamos de relembrar as nossas histórias. Precisamos de nos relembrar como plantas e pedras.

Estas memórias podem curar-nos até à raiz das nossas origens.” Gosto muito desta frase, exatamente porque nos traz aqui a uma dimensão fundamental desta relação essencial com os Lugares que é a atenção, um reparo devocional e fascinante, uma atenção sagrada. Podemos começar a ver, sentir e escutar todas as relações que nos assistem nos lutos, dores e amor, que se podem transformar em canções, histórias ou poesia, ajudando-nos a tomar atenção.

Conceito de Mito

Mas comecemos pelo início, pelo conceito de mito. Ouvimos falar de Mitos, mas não percebemos bem o que é um mito–é uma palavra quase que mística, uma palavra meio misteriosa, não é? O que será um mito? Na verdade, os Mitos andam pelas ruas da amargura, porque o que é tido como um mito é algo para descartar, é mentira, ou não é factual, ou é puramente inventado, ou foi apenas imaginado. Esta ideia dos Mitos, numa sociedade racional como a nossa, é algo que tem uma carga muito negativa e depreciativa.

Agora, quero que pensemos em conjunto sobre o que são realmente os Mitos. Quando limpamos a carga cultural, no fundo da validação exclusiva da razão e dos factos, ficamos com os Mitos que se relacionam com as histórias antigas de um lugar. Reportam a formas de transmissão oral de conhecimentos entre gerações e qualquer mito serve de guia existencial, filosófico, prático e espiritual. E os Mitos, na verdade, acabam por capturar uma compreensão particular da forma de viver numa determinada comunidade, num determinado lugar, num determinado tempo. Então é isso que os Mitos nos trazem. São riquíssimos a nível das próprias leis da vida, a nível da própria experiência de vida, assim como do ecossistema onde se insere.

Os Mitos são codificados em metáforas e símbolos, em histórias e canções, mas emergem sempre da experiência vivida, localizada e contextual, da população de pessoas reais como nós, que nascem, morrem, casam, que têm filhos, com as suas frustrações, desilusões, tristezas e alegrias. E, no fundo, o movimento dos Mitos, os seus fios, vão sendo tecidos através desta experiência real do dia-a-dia, dos desafios e sonhos. Seja por meio de jornadas individuais, de visões, intuições, sensações ou de rituais comunitários de inter-relação entre a comunidade, o lugar e o tempo que ocupam.

Qualquer cultura à roda do globo tem o seu conjunto de Mitos, e nós, ocidentais, não somos uma excepção a esta regra. Podemos achar que sim, mas não. Ou seja, na verdade, os Mitos fazem sempre parte da forma como construímos a nossa realidade–para onde olhamos, o que é mais importante, o que é visível e o que está escondido?

Nas comunidades mais tradicionais, na verdade, os Mitos fornecem as instruções originais, de como viver em integridade e reciprocidade. Agora, há uma questão fundamental que temos de cuidar que é a nossa mente absolutista: fomos aculturados sempre à procura da verdade única e final. Estamos sempre à procura da solução final, mas os Mitos são vivos, tal como nós. Os Mitos não são fixos, estão constantemente a modificar-se a partir do lugar, de uma experiência física num lugar concreto, evoluindo, transformando-se, modificando-se.

Esta palavra e conceito, evolução, tem sido limitada e fechada num movimento ininterrupto sempre, para cima, para a frente e para melhor. Mas a evolução e a involução andam de mãos dadas–às vezes vamos para a frente, outras vezes vamos para trás e não há aqui um certo ou errado. Os Mitos constroem as verdades socioculturais, instruem e guiam, sempre tendo como referente o lugar e ecossistema de onde nascem, trabalhando desde o lado prático ao mistério das coisas. Desde leituras arquetípicas e astronómicas do cosmos e das estações, os Mitos também são tecidos com as ferramentas e as práticas de sobrevivência nesse lugar. Ou seja, os Mitos da Montanha vão diferir dos Mitos à beira do oceano, que diferem dos Mitos do Deserto, porque todos eles falam da experiência directa e intergeracional das populações que vivem nestes Lugares concretos.

Também é importante trazer a ideia que os Mitos nos abrem a outras camadas da nossa consciência, e estas diferentes dimensões da consciência abrem-nos a um tecido complexo e diverso da realidade–a consciência onírica ou da imaginação não linear. Convido à possibilidade de tocarmos os Mitos sem os querermos dissecar ou fechar, sem os controlar e nunca os hierarquizar; abrindo-nos, a uma percepção relacional e dialógica, ou seja, em diálogo, reclamando uma relação selvagem e arcaica. É uma percepção mágica, criativa e integral.

E claro que os Mitos também invocam os padrões essenciais humanos–todos nascemos e morremos, tocamos na felicidade e na infelicidade. Posto de forma extremamente simples, a complexidade das nossas vidas é também expressa nos tão poderosos os Mitos, ao tocarem nestes pontos comuns da experiência de ser humano, invocando as matrizes, e estas realidades soma-psico-espirituais. Realidades antigas que nos ancoram e conectam.

Na verdade, os Mitos, residem nas extensas e selvagens camadas não racionais. Sendo extremamente íntimos, como a linguagem dos nossos sonhos ou da imaginação, da intuição e do instinto. Os Mitos, obviamente, por serem íntimos das dimensões selvagens da psique, falam a nível simbólico, complexo e não linear. Por exemplo, quando lemos uma história, o que se passa na história pode não ser exatamente aquilo que a mente racional capta. Aliás, há sempre mais a acontecer num conto, que só se vê de fugida pelo canto do olho.

Os Mitos registam e alquimizam o processo coletivo das grandes mudanças, ansiedades e transformações da vida humana, registando-as e ancorando-as na paisagem arquetípica.

Resumindo, trouxe duas ideias fundamentais: primeiro que os Mitos são locais por derivarem de Lugares, cada um com a sua realidade ecossistémica singular; segundo que expressam também o processo colectivo da realidade humana, as suas ansiedades e desafios.

Os Mitos são uma Família Complexa

Os Mitos são também pontes de parentesco com o mais-que-humano, ligam-nos ao mundo imanente, ao sagrado, à biologia, topografia, meteorologia, geografia e aos espíritos. Lembram-nos das conexões com os antepassados. Recordam-nos oportunidades de conexão profunda, dentro e fora de nós. Lembram-nos dos encontros profundíssimos que nos mantêm em relação, como símbolos que herdamos colectivamente, seja em termos sociais, humanos ou ecológicos.

Apesar do seu poder de ligação, são muitas vezes invisíveis, como os Mitos da nossa sociedade ocidental. Mas, no fundo, moldam a estrutura bem profunda da sociedade onde nos encontramos. Então, outra questão importante dos Mitos é a tradição oral. Os Mitos são para contar ou cantar em histórias, lendas, contos, sagas, poesia e narrativas. Histórias a serem contadas, recontadas, cantadas, oradas, comunicadas, demonstradas, celebradas, transmitidas, partilhadas e ritualizadas. Na tradição oral não há verdades-absolutas, mas sim verdades comunitárias e sazonais, sempre em metamorfose. Acontece que, com o advento da escrita verbal, implica o uso de um alfabeto, um código escrito. O que já é uma abstração da própria linguagem. E, na verdade, a alfabetização aumenta a linearidade, e abstracção sequencial do pensamento. Contudo, os Mitos não são lineares nem unos, mas redes polivocais, a muitas vozes. Mas podemos resgatar a vida dos Mitos–como fazendo parte da função integrativa da mente. Os Mitos conseguem sintetizar, integrar e sincronizar os hemisférios do cérebro, as zonas antigas e recentes. Mas temos de deixar que não façam sentido racionalmente.

Porque os animais falam e as Montanhas movem-se e existem os espíritos das pedras. A mente racional ocidental, extremamente confinada aos factos, reclama: “Mas isso não faz sentido, mas isso não é possível.” Já referi que os Mitos trazem, codificado em metáforas e simbolos, experiências e sabedorias intergeracionais e altamente complexas. Os Mitos têm milhares e milhares de anos, em evolução em transformação, passados pela oralidade e pelas estações, por cada corpo e voz que os soprou e interpretou. E quem conta um conto claro que acrescenta um ponto! Sim, faz parte, porque quem conta a história vai ser uma pessoa diferente e cada vez que a conta é também uma pessoa diferente, então vai contá-la de forma diferente. Vai transformá-la.

Quando escrevemos, arriscamos cristalizar os Mitos em versões autorizadas, verdadeiras, a única certa, a versão moral, a única possível. Isto encolhe e limita as possibilidades da vida real.

Os Mitos são Criativos

Outra forma que temos de olhar para os Mitos é mudarmos da análise intelectual para uma relação criativa. Sempre que lerem uma história, leiam-na alto! Os contos populares da vossa zona, de onde vivem, deixem as palavras, sons, imagens, reverberação, a frequência de tudo passar pelo vosso corpo. Saboreiem os movimentos, significados e sabedorias, na própria boca, e testemunhem o que sai, porque quando começam a contar um conto em voz alta, ele muda automaticamente. Não se fixem em “ler correctamente,” ou ipsis verbis o que lá está, permitam que ganhe vida. Honremos as histórias pela interpretação, em vez de nos distanciarmos na análise racional.

O Mistério

Adentrar na energia dos Mitos, desde as histórias da criação do mundo, às lendas, aos contos de fadas, é essencial registar que todos eles trabalham o mistério. E esforçamo-nos muito para que as coisas não sejam misteriosas. Inevitavelmente, estamos sempre mergulhados em mistério, e a potência arcaica dos Mitos é de facto oferecerem-nos caminhos, chaves, alçapões, portas ou passagens para trabalharmos com os vários mistérios que nos envolvem.

Para citar este artigo:

BATALHA, Sofia. A Riqueza o Parentesco Selvagem. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-49/a-riqueza-do-parentesco-selvagem/, número 49, 2024

Os Mitos são também pontes de parentesco com o mais-que-humano, ligam-nos ao mundo imanente, ao sagrado, à biologia, topografia, meteorologia, geografia e aos espíritos. Lembram-nos das conexões com os antepassados. Recordam-nos oportunidades de conexão profunda, dentro e fora de nós. Lembram-nos dos encontros profundíssimos que nos mantêm em relação, como símbolos que herdamos colectivamente, seja em termos sociais, humanos ou ecológicos.

Sofia Batalha

Sofia Batalha

Fundadora e Editora da Revista

Mamífera, autora, mulher-mãe, tecelã de perguntas e desmanteladora o capitalismo-global-colonial-tecnológico um dia de cada vez. Desajeitada poetiza de prosas, sem conhecimentos gramaticais. Peregrina pelas paisagens interiores e exteriores, recordando práticas antigas terrestres, em presença radical, escuta activa, ecopsicologia, arte, êxtase, e escrita.
Honor hystera. Re-member. Response-ability. (un)Learn together.


Autora de nove livros e editora da revista online Vento e Água, Comadre conversadeira no podcast Re-membrar os Ossos e em Conversas D'Além Mar. Instagram, Serpentedalua.com, Sofiabatalha.com

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