Onde mora o coração, histórias e paisagens
Coluna de Ana Sevinate
3 MIN DE LEITURA | Revista 48
Os Olhos de Luzia Requerem Olhos
à Íris, à Lila e à lúcia-lima,
este texto foi inspirado na sua sabedoria
Os olhos de Luzia são grandes lagos, abrigando as águas velozes das mais altas montanhas. Os olhos de Luzia são o brilho do sol de inverno, trazendo alento aos flocos de neve que se lançam no espelho da noite. Os piscos poisam no seu reflexo e os veados correm de encontro ao seu chamamento. Os seus corações percorrem o caminho que os olhos de Luzia alumiam.
Os olhos de Luzia requerem olhos. E os olhos de Luzia veem nos recantos da escuridão e da dor, encontrando os nossos. São lamparinas. E os nossos corações requerem corações. E Luzia vê-os e acolhe-os com todos os seus recantos e com todas as suas penumbras. Em todas as ocasiões. Para que se aventurem, os nossos, a ver à transparência na claridade dos dias pequeninos, encontrando o dela.
Luzia ensina-nos que os olhos, para aprenderem a ver, no escuro das noites frias, rogam que outros olhos os vejam. Pois há lugares, no inverno e no coração, onde só ela chega. E para lá chegar, com ela, é preciso que no nosso olhar more quem nos vê e quem, um dia, nos viu. Atravessamos sozinhos, mas só atravessamos se, no nosso olhar, arda a chama da certeza que alguém nos ama ou, um dia, nos amou. Pois o amor é cego. Porque vê. O que só os olhos de Luzia veem.
É essencial, aos olhos, que voltemos a olharmo-nos, para que possamos percorrer o breu sem nos engolirmos com ele. Na paisagem do lugar e na paisagem do coração, é essencial, aos olhos, existirmos e ver a existência de quem partilha, a paisagem e o coração, connosco.
Se não formos vistos, não existimos e se não existimos não vemos. E se não vemos morre a paisagem do lugar e a paisagem do coração. Deprimimos. E o luto não acontece. O sentimento de perda torna-se impensável e impossível de consentir.
Luzia ensina-nos que o amor é um ato de fé. Pois os passos de Luzia antecedem os passos, autónomos e livres, de quem segue o caminho sem ver. E os passos de Luzia aguardam os passos de quem se demora por chorar. E os passos de Luzia deixam pegadas para que as possamos sentir na planta do pé e nas plantas que agora dormem e sonham connosco. Pois o amor é cego. Porque confia. Nos passos dela.
Coberta por um manto cor de meia-noite e pontilhado por constelações e auroras boreais, Luzia ensina-nos a cantar, para que a música ecoe, seguindo-a. No regaço abriga cânticos de esperança e melodias douradas. Guarda lenços bordados com as iniciais de ti, de mim, da ursa e da romã. Porque existimos todos nela. Nos seus olhos. Que veem por nós, que reclamam por nós, que sorriem connosco. No seu coração. Que promete por nós, que se lembra por nós, que atravessa connosco. E quando o brilho dos olhos se acende, a voz desprende-se e pinta-se solta para dar corpo ao manifesto e ao lamento.
E quando o aroma jubiloso e cítrico se espalha no ar gelado, Luzia convida-nos, por um instante, a pernoitar no silêncio. Do inverno e do coração. Sussurrando canções de embalar.
Para citar este artigo:
SEVINATE, Ana. Os Olhos de Luzia Requerem Olhos. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-48/os-olhos-de-luzia-requerem-olhos/, número 48, 2023
Se não formos vistos, não existimos e se não existimos não vemos. E se não vemos morre a paisagem do lugar e a paisagem do coração. Deprimimos. E o luto não acontece. O sentimento de perda torna-se impensável e impossível de consentir.
Ana Sevinate
Psicóloga clínica e psicoterapeuta
Pós-graduada em psicossíntese e em cuidados paliativos. Membro do grupo de trabalho Ecopsicologia Portugal e co-fundadora do projeto Histórias de Raiz. Formadora no curso de doulas de fim da vida.
Autora do livro Ser Terra: o abraço da Psicologia à natureza, publicado pela Chiado. Tecida por histórias, danças nas pontas dos pés, cores, papoilas aos molhos e folhas de tília.
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