O Canto do Verbo
Coluna de Ana Alpande
3 MIN DE LEITURA | Revista 48
O Silêncio da Extinção
Tenho grande paixão pelas criaturas do ar.
Talvez por ser filha de Iansã e ter quase todos os planetas no elemento ar, desde pequena que sinto uma grande atração por todos os assuntos relacionados com o céu: clima, nuvens, pássaros, estrelas e durante uma certa altura da minha vida, aviões.
Digo muitas vezes meio a sério meio a brincar que na próxima encarnação quero ser ornitóloga. Esta ambição traz-me muita alegria, primeiro porque posso dedicar-me com mais foco e atenção ao que me propus fazer nesta vida, e já não é pouco, depois porque este meu desejo implica que na próxima encarnação ainda haverão ecossistemas propícios à vida e proliferação das tribos do ar. É quase como uma rebeldia escolher para o meu hipotético futuro uma atividade que a cada ano que passa corre cada vez mais riscos de deixar de ser relevante. De acordo com os dados da Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves os números que reportam o estado das populações de aves na Europa são aterradores, à data de hoje uma em cada cinco espécies no nosso continente está sob a ameaça de extinção e uma em cada três encontra-se em declínio .
Quando me perguntam quais sáo os meus sonhos não consigo encontrar respostas cosmopolitas, sonho com florestas gigantes, céus repletos de variedade, sonho com rios de águas limpas e fluidas, fortes e violentas, peixes que se debatem contra a corrente, pulando de vida e saúde.
Estes são os meus sonhos, ao mesmo tempo os meus pesadelos porque à minha volta, de ano para ano vejo justamente o oposto daquilo a que aspiro.
As intenções de futuro (para a próxima vida) revelam-se cada vez mais ambiciosas, nos oito anos em que vivo neste código postal tenho assistido à diminuição significativa de encontros com aves. Há cerca de 6 anos que deixei de ouvir cucos, vejo cada vez menos pegas rabudas, a população de caniças parece ter diminuído, há cerca de três anos que não avisto mochos galegos e este ano observei menos águias que o normal.
Nos tempos livres gosto de treinar qualquer coisinha para não chegar à próxima encarnação sem referências nenhumas, então ando por aí com a aplicação Merlin aberta no telemóvel a gravar cantos de pássaros, guardá-los em ficheiros e a comparar os registos com anos anteriores. Há um doce amargo nesta atividade. Adoro ver as ondas sonoras desenharem-se no ecrã enquanto o monitor vai mostrando a população local de vizinhos aéreos, este é o doce: aprender a reconhecer quem partilha o ar que respiro, reconhecer suas singularidades, testemunhá-los tal como me testemunham; o amargo é constatar que os céus andam mais silenciosos e a variedade de espécies mais reduzida.
Como é que esta pobreza sensorial afeta o meu ânimo e espírito? O meu corpo é matéria prima de construção do lugar onde vivo, se o lugar onde vivo tem cada vez menos variedade, como fica a qualidade da minha participação no mundo?
Quanto mais pobre a diversidade do ecossistema de um lugar, mais seca e debilitada a alma dos seus habitantes. Inevitavelmente mais desinteresse pelo lugar, menos tesão pela participação sensorial do corpo na trama na vida, logo mais espaço para oportunistas e especuladores extrativistas.
Vou acomodando lutos demasiado grandes para o espaço do peito, mas
talvez o problema seja esta minha miopia cultural de achar que o peito é meu, na verdade eu sou do meu peito e o meu peito é do mundo, assim sendo o “meu” luto cabe na junção
de todos os peitos, do meu e dos pequenos peitos dos meus irmãos do ar. Urge então corrigir o “meu” para nosso.
Alguma vez na vida o luto pode pertencer apenas a um corpo?
Percebo cada vez mais que a minha militância pela beleza só pode sobreviver com uma transformação radical da minha noção de espaço e pertença. Os meus lutos, tristezas e ansiedades não podem ser acomodadas no “eu” ou então a lógica da extinção acabará eventualmente por engolir a minha alma.
Para citar este artigo:
ALPANDE, Ana. O Silêncio da Extinção. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-48/o-silencio-da-extincao/, número 48, 2023
Quanto mais pobre a diversidade do ecossistema de um lugar, mais seca e debilitada a alma dos seus habitantes. Inevitavelmente mais desinteresse pelo lugar, menos tesão pela participação sensorial do corpo na trama na vida, logo mais espaço para oportunistas e especuladores extrativistas.
Ana Alpande
Colunista e Autora regular da Revista
Terapeuta de Trauma, Artista, Astróloga, Contadora de Histórias
A minha missão é dizer não ao desperdício da beleza e procurar contribuir para uma estética que promova a criação de espaços quotidianos que fertilizem o território da Alma.
Actuo como educadora, terapeuta de trauma e facilitadora de grupos terapêuticos de expressão artística e co-regulação emocional.
O principal foco de estudo e reflexão de momento é o trauma individual, transgeracional e colectivo, tendo como pano de fundo a questão do vínculo, nas suas variadas afetações e expressões.