artigo de Sofia Batalha

O Culto da Modernidade

7 MIN DE LEITURA | Revista 48

Recentemente, têm sido produzidos vários documentários sobre cultos. Neste artigo, utilizo o termo culto para me referir a um grupo devotado a uma pessoa, ideia ou filosofia, englobando a sua atual tensão, controvérsia e implicações pejorativas, relacionadas com actividades questionáveis.

Estes programas de entretimento seguem a linha progressiva do fascínio de um culto até à rutura violenta final. No outro dia, via um destes documentários da Netflix sobre um culto qualquer, e era horrível, como todos os cultos. Enquanto o via, perguntei-me até que ponto os cultos não são aleatórios, mas uma extensão estranha da Modernidadenão consigo evitar compará-los à terra prometida da Modernidade, pois são apenas mais uma expressão das mentes fragmentadas criadas por esta cultura. Isto levou-me a pensar: não será a Modernidade uma espécie de culto, um culto tecnológico apaixonado pela ideia de si próprio? Serão os cultos assim tão estranhos ou tão afastados da expetativa comum de como funciona a psique moderna? Aprofundei um pouco mais o que significa estar num culto e como as pessoas se sentem quando estão num culto.

Há muitos artigos interessantes na Internet sobre como perceber que se está num culto ou ajudar amigos que foram sequestrados por cultos. Com este artigo, não pretendo reduzir, ridicularizar ou humilhar as pessoas que saem de cultos, pois trata-se de uma experiência psicológica muito difícil e traumática de violência profunda e generalizada e de aniquilação da identidade. Se bem que, quando pensamos na Modernidade, na mentalidade ocidental-antropocêntrica-tecnocapitalista, já há muita coisa incutida em nós de uma forma muito cultual, toda a nossa personalidade é moldada para aquilo que a Modernidade valoriza, como os níveis de produção e a racionalidade, só para referir alguns.

Estou ciente do paradoxo que este convite à reflexão pode trazer devido às teorias da conspiração: não estou de modo algum a falar de um ponto de vista conspiracionista -a maioria destas teorias partilha a mentalidade de culto. Os paralelismos entre os cultos e a Modernidade não se dirigem linearmente em direção a uma estrutura da Modernidade como conspiração. Uma teoria da conspiração envolve normalmente a crença de que um grupo secreto, mas influente, poderoso e sinistro é responsável por acontecimentos ou fenómenos. A minha opinião sobre a Modernidade como um culto tem a ver com as consequências psíquicas e involuntárias dos enquadramentos de culto na criação de cultura; e não com uma idealização antropocêntrica e imatura de uma sala secreta de pessoas poderosas que controlam tudo. Trata-se de compreender que a Modernidade é muito mais fechada do que normalmente reconhecemos; e que os comportamentos prejudiciais tipo culto, como a dependência excessiva de líderes carismáticos, o isolamento de perspectivas externas, a diversidade reduzida e a comunicação fechada são a norma, e não a excepção.

A minha proposta situa-se fora do zeitgeist ocidental moderno mais alargado, no território excedente da psique feral, não confinada pelas formas “normais” ou supostamente “naturais” que se espera que as pessoas actuem nesta mentalidade histórica específica, andro-antropo-euro-cêntrica, rígida, tendenciosa e limitada.

Esta perspetiva pode provocar uma dissonância cognitiva e, tal como diz a Dra. Saliha Afridi: “A dissonância cognitiva é dolorosa… e entrar numa nova visão do mundo é nada mais nada menos do que o despedaçamento e o colapso de um velho eu. Admitir que tudo o que nos foi dito sobre um país e uma ideologia está moralmente errado é absolutamente devastador e exige uma integridade e uma coragem extraordinárias. Exige que se faça o trabalho de luto, pessoal e coletivo. Exige não só confrontar verdades duras, mas também reavaliar todas as suas próprias crenças e valores. Reconhecer que as próprias fundações sobre as quais construímos a nossa compreensão são defeituosas, especialmente quando estão ligadas a algo tão horrível como a limpeza étnica de um povo e de uma terra, é uma experiência profundamente dolorosa e desorientadora. Desafia a nossa identidade, o nosso sentido de certo e errado, e abala o núcleo da nossa visão do mundo”.

Etimologia

Etimologicamente, a palavra culto passou a significar “adoração, homenagem” (ainda em uso na língua portuguesa); no final do século XVII, tornou-se “uma forma ou sistema particular de culto”, do latim cultuscuidado, trabalho; cultivo, cultura; adoração, reverência”, inicialmente “cuidado, cultivado”. A palavra foi reavivada em meados do século XIX a propósito de sistemas antigos ou primitivos de crença e culto religioso, especialmente os ritos e cerimónias empregues nesse culto, agora com o significado alargado de “atenção devotada a uma pessoa ou coisa em particular”.

Assim, vamos encontrar as semelhanças entre a Modernidade e as características do culto.

A promessa transcendental-material

Pode ser difícil lidar com isto porque a Modernidade é uma grande ideia, que permite o privilégio, o luxo e o conforto, através do controlo do capital e da tecnologia, que “salva” as nossas vidas da monstruosa impermanência da Natureza -a Modernidade é uma visão iluminada e transcendente, uma panaceia de soluções rápidas para todas as nossas vulnerabilidades humanas, prometendo resolver todos os nossos problemas.

A modernidade tenta resolver as principais dores humanas, desde a saúde e os sistemas médicos até à morte, à defesa, ao conforto, à alimentação e à energia. Esta comodidade privilegiada seduz-nos com a ilusão de que temos tudo à nossa disposição ou que poderemos ter se produzirmos e controlarmos o suficiente. Também nos são servidas infinitas formas de nos ligarmos, apesar da solidão e do isolamento generalizados. Assim, ficamos aturdidos num brilho ofuscante de luzes brancas que cobrem as estrelas e as suas antigas canções. Vivemos aprisionados no intenso brilho branco das promessas da Modernidade -como a imagem oposta da Caverna de Platão, pois em vez de sombras há apenas uma luz ofuscante- deixando-nos incapazes de imaginar outra coisa. Joan Tronto traz a ideia de irresponsabilidade privilegiada (cumplicidade e não-inocência), que somada às epistemologias da ignorância, um exame da complexidade na produção e manutenção da ignorância, dá pouca oportunidade e espaço na psique eurocêntrica para observar e se responsabilizar por toda a violência e consequências brutais da Modernidade. É mais fácil dissociar e seguir o brilho e as ilusões do excepcionalismo.

Devido a estas aliciantes promessas, muitos devotos da Modernidade recrutam outros em todo o mundo, pela narrativa ou pela força, pensando realmente que estão a ajudar -também pode ser chamado de capitalismo neoliberal colonial ou capitalismo imperial.

A armadilha nas garantias da Modernidade é que, na maioria das vezes, elas serão aplicadas e a diversidade será violentamente subjugada -é preciso contornar o local e o contexto de onde se vive para obedecer ao conjunto normalizado, universal e global de regras e crenças que são frequentemente ilógicas quando aplicadas localmente.

A base da panaceia da Modernidade é o crescimento imaginário e o progresso infinito num planeta finito, um desejo criado a partir de uma psique extrativa e controladora. É por isso que o excesso de crescimento da Modernidade é tão sedutor, porque promete uma vida nova e confortável para todos, trazendo constantemente novos membros para o culto.

No entanto, em troca a Modernidade pede-nos tudo: a renúncia à família humana e ecológica, o corte, a negligência e o esquecimento constantes. Temos de nos separar do lugar e isolarmo-nos. A modernidade objetiva também tenta isolar-se do contexto, seguindo o seu desejo de universalismo absoluto, vendendo a sua panaceia através da lavagem cerebral e doutrinação. Existe esta ideia de culto coercivo de que, se nos limitarmos a seguir o ciclo de produção, se nos limitarmos a respeitar as leis capitalistas e a seguir o fascínio da tecnologia, tudo correrá bem, e tudo o que não for assim é simplesmente mau ou errado (ou primitivo, estúpido ou preguiçoso). Isto cria uma paranoia em torno do crescimento e do progresso porque o progresso é a garantia de base para os processos de decisão do governo. Mas depois há muitos fracassos, colapsos não reconhecidos e sombras nunca vistas.

Os inimigos e os traidores

Uma das principais características de um culto é o seu modelo de liderança carismática, onde o líder (governo ou corporação) tem a autoridade máxima. O líder é quem define a lei, imitando governos e corporações altamente autoritários. Mesmo que sejamos diretamente afetados por estas leis e decisões, podemos ter dificuldades reais em criticar ou pedir mudanças – quem não pertence ao núcleo de poder pode ter dificuldades reais em mostrar o lado obscuro deste tipo de autoridade. Assim, estamos aprisionados ao status quo, e ao seu suposto comando e provavelmente rodeado de pessoas que estão convencidas da legibilidade desta autoridade.

E deparamo-nos com a elite, que se considera iluminada, os poderosos escolhidos com a chave mestra para transformar radicalmente, cortar e controlar a vida individual e comunitária no mundo. Podemos sentir-nos suportados por este sistema elitista, com um sentimento de pertença e unidade, apesar da constante coerção para cumprir regras e lutas pelo poder que, na realidade, não têm nada a ver com a ética da Vida. E, claro, tal como nos cultos, não há transparência – a inteligência artificial e a transição para uma sociedade sem dinheiro estão a ser discutidas pelos governos de todo o mundo, e nós não fazemos parte dessas conversas, entre muitas outras discussões invisíveis. Portanto, há muitos rituais e negociações secretas e coisas bizarras, confusas, ofensivas e manipuladoras a acontecer – todos sinais de culto.

Neste tipo de ambiente, não nos podemos dar ao luxo de ser cépticos relativamente às instituições ou ao próprio sistema, é melhor não levantar os véus da crítica. Além disso, há sempre informação aprovada e não aprovada. Nos cultos modernos altamente individualistas, o conhecimento válido ou as verdades absolutas vêm da ciência (NÃO sou negadora da ciência, apenas crítico de narrativas de heróis narcisistas: a ciência é um esforço comunitário de observação e de perguntas rigorosas). Na ciência moderna, não se pode incluir a intuição, o humor, o afeto ou o amor – todas subjectividades e não podem entrar na verdade das coisas ou das instituições. Claro que as práticas científicas indígenas incorporam muito disto, com a sabedoria simbiótica de parentesco mais do que humano e modelos de investigação, sendo constantemente minadas e não validadas pela Modernidade.

O culto da modernidade tende a evitar tudo o que não segue a sua própria lógica, pois acredita que está no topo da hierarquia evolutiva e moral (imaginada), numa violenta competição de piadas internas.

E há os Outros, os que não pertencem, os que têm o passaporte errado, os que não podem entrar ou são vistos como inimigos, forasteiros, migrantes, ou pior ainda… traidores. Os traidores são as pessoas que não obedecem a esta ordem sistémica e globalizada. O tratamento dos traidores pelo culto é feito mediante gaslighting e pressão dos pares. E, claro, impedindo as pessoas de pensar, para que os alistados não esqueçam as promessas, desencorajando as pessoas a sair.

Quem é válido? A quem pertence a verdade? Quem detém o conhecimento? A paranoia entorpecente completa, o armamento da dor e do medo, os ideais da força purificadora da Modernidade que vencerá todo o mal. Deste ponto de vista hierárquico, a Modernidade sente-se atacada por acusações, pelos restos do seu próprio genocídio, ecocídio, tortura e aquele que leva a culpa no lugar de outro. A modernidade, tal como outros cultos, só alimenta e constrói muros mais altos porque “só o terror pode combater o terror”; só o isolamento pode manter viva esta mentalidade, havendo este medo coletivo de ser destruído por inimigos externos. Isto apodera-se de tudo. E, claro, como todos os ciclos, termina com o conflito final, nós contra eles. Para evitar a destruição e a sua própria aniquilação, a Modernidade cria barricadas, isola-se e entra em estado de sítio. Mas nada pode impedir o ciclo de se repetir.

A alteridade dos Outros faz parte da definição de seita, os antigos membros ou qualquer pessoa que não pertença ao grupo central não são legítimos. Assim, abundam as narrativas falsas e redutoras sobre os Outros serem maus, preguiçosos, violentos, demasiado orgulhosos e até imorais.

Estes Outros fora dos tentáculos da Modernidade são desonestos, pois pertencem aos grupos errados; tudo o que está fora da Modernidade é primitivo, mau, ou simplesmente ignorante e estúpido. Há uma paranoia institucionalizada sobre a alteridade do mundo, sobre tudo o que não se conforme com a norma capitalista do indivíduo produtivo – um grande medo em torno da diversidade e dos Outros que provocam aniquilação, destruição e violência. Por isso, há esta necessidade de controlar, domesticar e civilizar o próprio mundo (embora ele seja demasiado grande para ser controlado, graças aos deuses), demonstrada pelo complexo da indústria militar em todo o mundo, pela produção de armas e por todas as guerras seculares e genocidas cíclicas que se repetem. E, claro, na Modernidade, no capitalismo tecnológico tardio, as empresas estão acima da lei. As empresas, as grandes tecnologias ou indústrias acreditam que estão acima da ética e da Vida. E por isso há muita lavagem cerebral e propaganda para manter o status quo.

Há muita intimidação e vergonha, como as ferramentas de controlo utilizadas por todos os cultos. Claro que o colonialismo é uma forma de bullying. E há a vergonha cristã, a vergonha protestante. Há muita humilhação, porque, apesar de sermos glorificados como indivíduos, não temos valor intrínseco. Só somos valorizados pelo que produzimos, sejam armas ou conhecimentos (se se enquadrarem nas regras). Portanto, há muitas prescrições normativas, mas invisíveis de culto. Na Modernidade, é bastante fácil acreditar que se é insuficiente ou indigno, completamente desmerecedor – que se tem muitos defeitos, que não se pode realizar e que a autoestima é totalmente reduzida, juntamente com as comunidades cortadas e mutiladas.

A Modernidade é alimentada pelo ódio e pelo medo do Outro. Como qualquer culto, a Modernidade precisa de inimigos para manter a sua coerção e coesão, as suas promessas ilusórias – os membros da Modernidade são encorajados a partilhar o seu ódio sob formas ritualizadas.

O colapso inevitável

Mas esta fantasiosa progressão, crescimento, soluções prometidas e inimigos imaginados cairão e desmoronar-se-ão, e muitas vidas se perderão – modernidade em fase tardia.

Estaremos num culto – será a Modernidade uma cult(ura) imatura que nega a impermanência cíclica e as consequências reais das suas próprias acções?

Referências

Para citar este artigo:

BATALHA, Sofia. O Culto da Modernidade. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-48/o-culto-da-modernidade/, número 48, 2023

Perguntei-me até que ponto os cultos não são aleatórios, mas uma extensão estranha da Modernidadenão consigo evitar compará-los à terra prometida da Modernidade, pois são apenas mais uma expressão das mentes fragmentadas criadas por esta cultura.

Isto levou-me a pensar: não será a Modernidade uma espécie de culto, um culto tecnológico apaixonado pela ideia de si próprio? Serão os cultos assim tão estranhos ou tão afastados da expetativa comum de como funciona a psique moderna?

Sofia Batalha

Sofia Batalha

Eco-Mitologia e Ecopsicologia; Fundadora e Editora da Revista

Mamífera, autora, mulher-mãe, tecelã de perguntas e desmanteladora o capitalismo-global-colonial-tecnológico um dia de cada vez. Desajeitada poetiza de prosas, sem conhecimentos gramaticais. Peregrina pelas paisagens interiores e exteriores, recordando práticas antigas terrestres, em presença radical, escuta activa, ecopsicologia, arte, êxtase, e escrita.

Certificada em Ecopsicologia e Mitologia Aplicada pela Pacifica University, nos EUA. Identifico-me como pós-activista, fazendo parte do Advisory Board da The Emergence Network.

*Homenagear hystera. Recordar a capacidade de resposta. (des)aprender em conjunto.

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