Mitologia Criativa

Coluna de Élia Gonçalves

4 MIN DE LEITURA | Revista 48

O Banco

Não me recordo de quando ele apareceu ali. Talvez, na minha infância, não fosse muito importante a existência de um banco de jardim no cimo de uma duna, junto à praia. Quiçá a presença do “Pouca Sorte”, a velha e enorme embarcação de pesca do Sr. Inácio, há muito abandonada numa outra duna, fosse suficiente para que o banco não me chamasse a atenção. Afinal, o Pouca Sorte, que me parecia na altura um navio gigante, era o cenário perfeito para aventuras de piratas, jogos escondidos, ou circuitos feitos de seixos para carochas.

Eu fui crescendo e o Pouca Sorte perdeu a magia de outrora, até alguma autoridade o ter vindo buscar, despindo a minha praia de uma história que lhe pertencia.

A relação com o meu banco verde aconteceu da mesma forma que acontecem as coisas que permanecem. Foi-se instalando de mansinho, por entre encontros e memórias, tempos conjuntos e lugares testemunhados.

Naquela altura não existia uma esplanada ali ao lado, as dunas eram maiores e repletas de chorões que se abriam em flores amarelas e lilases, ocultavam as casas e nos tapavam de tudo e todos, permitindo um pouco de privacidade e intimidade com o mar.

Por vezes as brincadeiras dos rapazes de doze anos enervavam-me e eu, tendo também doze anos, mas achando-me muito mais madura, abandonava a praia e vinha sentar-me ali, observando o mar, as pessoas e as tais brincadeiras que, à distância, não me pareciam tão idiotas.

Talvez tivesse sido nessa altura que comecei a escrever poemas. Quando o sol estava prestes a pôr-se e a praia ia ficando deserta, eu subia a passadeira, esperando ardentemente que o meu banco estivesse vazio, que mais ninguém tivesse escolhido aquela hora para se sentar.

Levava o meu caderno, uma caneta e sentava-me no lugar mais confortável do mundo, o meu banco de jardim na praia, o lugar seguro para permanecer com o mar e confessar-me ao sol que se escondia. Escrevia, murmurava palavras que pareciam feitiços e aguardava aquele momento mágico em que a bola de fogo parecia tocar nas águas. Quase jurava escutar o som das ondas de vapor que, no meu mundo secreto, surgiam daquele encontro.

Talvez tivessem sido nesses encontros diários, preenchidos por silêncios e cheiros de mar, que o banco deixou de ser um banco e se tornou num amigo que me esperava. Pois no meu sentir, havia ali um qualquer encontro, onde eu era recebida – sempre – desde um espaço que abarcava todas as emoções, todas as palavras, escritas, pensadas ou murmuradas. Um lugar que eu conhecia, que contemplava a mesma paisagem que eu, vivia de mar e estrelas e grãos de areia e recebia pessoas, cansaços e estórias. Um lugar que me conhecia sem esforço.

Houve uma noite, em que sentados ali nós os quatro, eu, a Carla e os dois rapazes que sempre nos acompanhavam, ela se lembrou de comentar:

– Nestas noites sem luar, até é difícil ver o mar. Está tão longe!

E um deles, com o seu ar de provocação habitual, responde:

– Vê lá, não queres o banco lá em baixo, ao pé da maré?

Foi o suficiente para que os rapazes trocassem um olhar entre eles e, nas brincadeiras parvas, agora dos catorze anos, pegassem no banco e o arrastassem até beira-mar. E, sentamo-nos lá, rindo que nem doidos e usufruindo do mar e das estrelas, numa noite mágica, igual a tantas outras.

Dois dias depois, três funcionários da Câmara Municipal voltaram a colocar o banco no lugar, enchendo-lhe os pés com uma camada de cimento tão grande que ele permanece no mesmo lugar até hoje.

Naquele banco, ao pôr-do-sol, durante as noites longas de verão ou nos amanheceres tardios, entreguei silêncios, risos e lágrimas. Estórias que foram partilhadas, segredos que ficaram por entre os velhos sulcos na madeira.

Ali fiz pactos de sangue, sussurrei promessas, sentei-me a ver o meu primeiro pôr-da-lua e entreguei a minha alma num beijo.

Ali regressei, durante anos e anos, mesmo depois de viver a grande distância, quando me sentia despenteada e perdida e sabia, no meu íntimo, que provavelmente precisava apenas de me sentar no meu banco verde de jardim na praia e olhar a paisagem que me olhava desde que eu nasci, para encontrar dentro de mim um espaço onde fosse possível respirar novamente. Um lugar tanto externo quanto interno, onde eu podia pertencer.

Um dia deixei de ir. Talvez me tenha distraído com a vida acontecer. Talvez tenha deixado de ter tempo. Talvez me doesse perceber que as coisas tinham mudado e não encontrasse mais um lugar onde encaixar.

Talvez me tenha esquecido.

E chegou o dia em que voltei a sentar-me para me deparar com um algo estranho e distante. Com a dor de se perder algo que nos é muito querido. Com uma estória que se acumulava em recordações, mas não me corria nas veias. Um lugar que já não me conhecia.

Fui ganhando consciência, desde um espaço muito sensorial, que as relações com os bancos, ou com as praias, não são diferentes das relações com outra coisa qualquer. Necessitam de tempo e intimidade. De silêncios, lágrimas de risos. De estórias partilhadas. De repetição. De investimento.

Tenho procurado tempo e espaço para ir lá, timidamente. Pedindo licença. Sento-me e fico. Sinto a madeira nos meus dedos e contemplo a paisagem. E espero pelo momento em que possamos lembrar-nos de novo.

Pergunto-me se o banco verde, a quem não posso chamar meu, pois ainda não lhe pertenço, guarda nos seus sulcos de madeira alguns dos meus poemas. Se gostou da noite em que foi um banco à beira-mar. De acolher pores da lua e beijos ardentes. Estórias partilhadas e pactos de sangue. Ou, porventura, guarde dentro um tempo em que era um lugar sagrado para uma alma despenteada.

Para citar este artigo:

GONÇALVES, Élia. A colcha. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-48/o-banco/, número 48, 2023

Talvez tivesse sido nessa altura que comecei a escrever poemas. Quando o sol estava prestes a pôr-se e a praia ia ficando deserta, eu subia a passadeira, esperando ardentemente que o meu banco estivesse vazio, que mais ninguém tivesse escolhido aquela hora para se sentar.

Élia Gonçalves

Élia Gonçalves

Colunista e Autora regular da Revista

Psicóloga
Terapeuta Transpessoal
Sub-Direção EDT – Escola Transpessoal

Contadora de Estórias
Mitologia Pessoal Criativa 
Autora do Mito de Ophídia

elia.gonçalves@escolatranspessoal.com