Entrelaçamentos Inegáveis

Coluna de Telma G. Laurentino

4 MIN DE LEITURA | Revista 48

Mergulhos profundos, arquétipos em metamorfose e indivíduos plurais

 

Fecho o ano e a trilogia Hidrocosmos em três actos – dança, choro e mergulho, com o terceiro verbo: a mergulhar nas definições cognitivas que, muitas vezes herdadas, são esquecidas nos cantos deslembrados das nossas mentes. Guiam-se assim as nossas ações e relações com outrem (humanos, não humanos e terras) por definições que não servem nem respeitam nenhum dos envolvidos. Mergulhemos então, porque a flutuar a gravidade sentida no corpo e nos pensamentos alivia-se. Águas calmas embalam-nos ternamente em memórias do lago materno amniótico da nossa génese. Quando consentimos que a água nos guie as reflexões, voltamos à nossa primeira casa líquida onde a intenção porosa de revisitar e metamorfosear as definições que nos guiam é sempre aceite.

Acredito que são nestas conversas com ecossistemas para além de nós que descobrimos os oxímoros entrelaçados que somos: cheios de contradições e complexidades naturais que refletem a vida na modernidade tecnocapitalista que habitamos. Somos assim indivíduos plurais. Células hominídeas e bacterianas interdependentes, em conversa com todas as outras expressões de vida ecosistémica. Cada um de nós é uma experiência subjetiva de uma existência profundamente relacional e fractal.

Não existe vida no vácuo. Os organismos hidrobióticos que lhe sobrevivem, como os Tardígrados, fazem-no cessando todo o seu metabolismo e entrando em criptobiose. Apenas voltam à vida quando as condições ambientais permitem novamente que as conversas porosas e interespecíficas recomecem: digestões, decomposições, mutualismos… Sabendo isto, ideias de separação e auto-suficiência jamais poderiam informar uma forma sustentável de vida.

Assim, ideias antropocêntricas de perfeição e simplicidade geométrica, de quadrados e círculos que definem e isolam o homem Vitruviano, dissolvem-se. Ideias de entidade central e mensurável – Separação – são interrompidas pela realidade caótica das relações orgânicas que nos compõem!

‘Homem’ metamorfoseia-se em pluralidade, ecossistema fluido, entrelaçamentos de água e poluição, conversa com simbiontes e parasitas, unidade imperfeita do todo.

A nossa separação do ecossistema terrestre por contentores epistemológicos e antropocêntricos é o berço da violência sócio-ecológica da modernidade. Assim, urge que mergulhemos profundamente nas nossas definições, arquétipos e história, observando profunda e atentamente as raízes da Separação para que possamos transformar e compostar essas ideias ao serviço da sustentabilidade.

O individualismo é um andaime essencial às crueldades coloniais modernas. Assim, erradicar o conceito de ‘indivíduo’ torna-se reação expectável quanto tantos de nós anseiam por mudança sistémica. Mas este raciocínio de erradicação poderá talvez  aprisionar-nos em ecos das culturas que abominamos, que subsistem de narrativas fundamentalistas e binárias, oprimindo acidentalmente transformações orgânicas e espectrais. Na verdade, a objetificação do ‘individuo’ como unidade estatisticamente dispensável já cometeu muitas violências utilitaristas e enche gavetas de museus e gaiolas de laboratórios em nome do estudo da vida supostamente enraizado em amor (falo com experiência e responsabilidade). Sem urgência em ter discussões coletivas e criativas na procura por alternativas centradas na compaixão, as instituições inventam ferramentas que incentivam os indivíduos a mergulhar na culpa da cumplicidade mas nunca na metamorphose, quebrando-se assim o poder colectivo da criação de mudança.

Cada lagarto numa população tem uma história que embora semelhante, é única. Cada indivíduo tem uma personalidade, uma história molecular, genética, filosófica, cultural que, embora ecoada, nunca antes foi vivida e expressada naquela tapeçaria específica de padrões efémeros.

Então, talvez respeito e compaixão sejam um direito de cada indivíduo como expressão temporária e (probabilisticamente) irreprodutível da complexidade da vida. Talvez um indivíduo não seja uma unidade biológica medida em isolamento mas uma história transcendental e poética de transformação bioquímica, tecida em relação porosa com todo o ecossistema Terra. Se aceitarmos indivíduos como fractais: simultaneamente unidade e eco do colectivo, então, quando sobre-exploramos e objetificamos uma vida, traímos o todo que prometemos honrar e cuidar.

Indivíduo: singularidade plural, unidade porosa de metabolismo cósmico

É-nos fácil compreender que uma molécula de água não é o rio, mas sabemos também que são as características das pontes de hidrogénio em cada H2O que permite às moléculas de água trocar de parceiro até 100 biliões de vezes por segundo, permanecendo estável em estado líquido, enquanto absorve quantidades enormes de energia. É a transformação molecular constante que, paradoxalmente, confere à água capacidade de estabilizar e regular o clima do planeta inteiro.

Evidentemente que a transformação sistémica não se efectua pelo indivíduo isolado, mas depende das características dos indivíduos quando estes formam pontes e ecolocalizam entre si, e com a Terra. Através dos ‘indivíduos plurais’ em relação com outros, quebram-se ilusões de separação e desespero, permitindo assim que a transformação e mudança se movam, permeando níveis incrementalmente mais colectivos do sistema: comunidade, instituição, cultura, ecossistema.

Em tempos que nos urgem a lembrança da incerteza e fluidez como partes naturais e indispensáveis da vida, talvez não necessitemos de eliminar o indivíduo conceptual mas, honrando o trabalho de resistir á  comodidade e aquiescência de definições obsoletas, evoluir uma definição ontológica de indivíduo que reconheça os entrelaçamentos ecossistémicos e nos guie na prevenção de violências contra a vida. Talvez a água seja uma excelente cartógrafa deste trabalho. Mergulhemos em rios de incerteza e criatividade radicais em busca de uma definição que interrompa valores narcisistas e deponha a falácia da separação! Procuremos a metamorfose de heranças arquetípicas e culturais que, deixadas ao abandono na psyche colectiva, nos mantém reféns de ciclos de perda!

Por falar em narcisismo: condição indesejada diagnosticada como imutável e permanente, embora grandemente recompensada pela maioria das culturas institucionais de heróis e CEOs Ocidentais – olhemos Narciso. A minha esperança exige-me sempre incerteza e pergunta-me se Narciso não se terá transformado depois de se afogar. E se ele pudesse aprender a Eco-localizar para além das suas definições de “eu” e aprendesse a ver o rio em reciprocidade e respeito… Talvez a história de Narciso não acabe quando ele se afoga, mas seja aí o início da sua aprendizagem da beleza do que está para além do que é reflexo á superfície…

Talvez após o mergulho à profundeza e escuridão das águas Narciso possa emergir com uma definição de “eu” que inclui a beleza reflectida e encarnada das águas, as água em si, as excreções, as lamas, os parasitas, as sombras e as garças… o ecossistema…

Um dia, tudo aquilo a que chamamos “individuo” irá inevitável e completamente transformar-se e viajar por outros corpos de água, outras histórias… Até que a morte nos una, talvez possamos mergulhar no paradoxo de ser um indivíduo plural em relações ecossistémicas que nos libertam de caixas e círculos de perfeição. Talvez possamos olhar os arquétipos e estórias antigas e perguntar, com mentes de metamorphose, o que ainda têm para nos ensinar. Talvez possamos tornar-nos indivíduos plurais em ecolocalização e mergulho profundo.

Com 2023 a terminar, pergunto-me:

Quais os mergulhos mais profundos do ano?

Que mais filosofias assépticas herdadas descobrirei no ano que vem?

Caso queiram continuar a perguntar comigo, cá estaremos <3

 

Para citar este artigo:

G. LAURENTINO, Telma. Mergulhos profundos, arquétipos em metamorfose e indivíduos plurais. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-48/mergulhos-profundos-arquetipos-em-metamorfose-e-individuos-plurais/, número 48, 2023

Talvez após o mergulho à profundeza e escuridão das águas Narciso possa emergir com uma definição de “eu” que inclui a beleza reflectida e encarnada das águas, as água em si, as excreções, as lamas, os parasitas, as sombras e as garças… o ecossistema…

Telma G. Laurentino

Telma G. Laurentino

Bióloga

Educadora
Escritora
Artesã intuitiva
Biodiversidade – Evolução & Genética – SocioEcologia – Educação inclusiva –
Pertença
TelmaGL.com
Telma.laurentino@gmail.com