Onde mora o coração, histórias e paisagens
Coluna de Ana Sevinate
3 MIN DE LEITURA | Revista 47
A memória da serra baixinha
Agradeço à Serra de Ossa e à chuva
Pela moldura do postigo em forma de pôr do sol, vejo o desenho dela, da serra baixinha, deitada, amparando tudo o que retorna a si: bolotas, preces e sonhos. A sua beleza guarda os meus segredos e o meu desalento aduba-a. Na sua sensualidade, abraça e na sua doçura, chora. É o tempo da chuva e é o tempo das lágrimas. Choramos e chovemos juntas.
E se a chuva não vier e se as lágrimas não vierem, não choramos nem as bolotas, nem as preces, nem os sonhos. Choremos, pois, com a serra, para que possamos enterrar as histórias que já secaram. Pois, se não as chorarmos, nem as enterrarmos, com a serra, é a serra que padece. Se não as chorarmos, nem as enterrarmos, nem morrermos, com a serra, padecemos com ela.
Sob um olhar psicológico, poderíamos dizer que aquilo que enterramos, torna-se memória e que aquilo que não deixamos morrer, torna-se fantasma. Acrescentando um olhar ecopsicológico, poderíamos dizer ainda que a psique existe dentro e fora e que a alma nossa é também a da terra. E nesta equação, a dor da perda assume o lugar sagrado de “devoção ao mundo” (Weller, 2015).
Mas se não estivermos disponíveis para nos abrirmos a este lugar, as histórias do mundo não podem tornar-se memória. Pelo contrário, repetem-se, congelam-se no tempo, numa semi-vida, sem o sopro da imaginação e sem a chama da pertença. Não podendo tornar-se memória, são apenas fantasmas. Quando, tragicamente, não nos deixamos morrer. E assim, vamos roubando a vida à própria paisagem. Quando, tragicamente, não a deixamos morrer.
E quando me desimagino no sofrimento de uma humanidade que parece estar morta-viva, encosto-me à serra baixinha e ouço o grito abençoado da chuva e ouço o canto destemido do vento. E a zanga ganha voz.
E quando me desimagino na solidão de uma humanidade de que se esqueceu de quem é, toco na serra baixinha e regresso a casa. E a tristeza inunda-me sem me afogar.
E quando me desimagino no desnorte de uma humanidade que perdeu o alcance da memória, respiro a serra baixinha e contemplo as nuvens que insistem em rasgar-se em violeta e laranja. E o vazio ganha espaço.
E quando me desimagino na arrogância de uma humanidade que se deslaçou da afinidade imanente ao seu bioma, repouso na serra baixinha e sorrio perante a generosidade de alguns. E a culpa ganha direito a existir.
E quando me desimagino na intolerância à finitude de uma humanidade que se priva de morrer todos os dias, um bocadinho mais, aceito o convite da serra baixinha e entro na noite assustada. E o medo ganha colo.
Aprender a morrer é aprender a viver. E se não existe vínculo sem perda, é intrinsecamente necessário ampararmos o medo de perder para que possamos continuar a viver em laço, com amor e “ao ponto das lágrimas” (Camus in Weller, 2015). E o amparo faz-se no luto. E o luto faz-se na zanga, na tristeza, no vazio, na culpa, no medo ( Macy & Brown, 2014). E o luto faz-se só, mas nunca, e jamais, sozinho. Faz-se no círculo. E o luto faz-se na dor que, sendo única, nunca, e jamais, será individual. Faz-se na teia.
O luto é um dos lugares sagrados da alma. Da alma que é da terra. Da alma de quem parte, e se torna paisagem. Da alma de quem fica, para se lembrar. Para que, um dia, possa ser também memória. Memória de quem um dia entendeu que, para que a história permaneça viva, não pode ser nem revivida nem repetida. E sim, honrada. Memória de quem um dia disse ao ouvido de quem veio depois que o futuro implora para que enterremos os mortos e as histórias caducas.
Porque ser ancestral não é ser fantasma. É ser recordação. É viver na memória da serra baixinha. Que chora e chove. Connosco.
Porque ser futuro não é ser morto-vivo. É ser serra baixinha. Que chora e chove. Com todos.
Macy, J., & Brown, M. (2014). Coming Back to Life. Canada. New Society Publishers.
Weller, F. (2015). The wild edge of sorrow: rituals of renewal and the sacred work of grief. Berkeley: North Atlantic Books.
E quando me desimagino na solidão de uma humanidade de que se esqueceu de quem é, toco na serra baixinha e regresso a casa. E a tristeza inunda-me sem me afogar.
E quando me desimagino no desnorte de uma humanidade que perdeu o alcance da memória, respiro a serra baixinha e contemplo as nuvens que insistem em rasgar-se em violeta e laranja. E o vazio ganha espaço.
E quando me desimagino na arrogância de uma humanidade que se deslaçou da afinidade imanente ao seu bioma, repouso na serra baixinha e sorrio perante a generosidade de alguns. E a culpa ganha direito a existir.
Ana Sevinate
Psicóloga clínica e psicoterapeuta
Pós-graduada em psicossíntese e em cuidados paliativos. Membro do grupo de trabalho Ecopsicologia Portugal e co-fundadora do projeto Histórias de Raiz. Formadora no curso de doulas de fim da vida.
Autora do livro Ser Terra: o abraço da Psicologia à natureza, publicado pela Chiado. Tecida por histórias, danças nas pontas dos pés, cores, papoilas aos molhos e folhas de tília.
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