Onde mora o coração, histórias e paisagens

Coluna de Ana Sevinate

3 MIN DE LEITURA | Revista 46

Uma Figueira Mora Aqui

 

Diana sonhava com as casas pelas quais tinha passado, à sua procura. Acordada, imaginava a sua casa do futuro, a da pele, a da toca, a do reino, a da raiz. Procurou, mas não encontrou. E depois encontrou a casa imaginada. Mas que, afinal, não era a casa sonhada. Não ecoada nem no corpo nem no corpo-sonho (Mindell, 2011). Continuou à procura, mas continuou a não encontrar. Até que, por fim, no limiar da passagem e do não-lugar, encontrou a casa não imaginada. E, aparentemente, não desejada. E, profundamente, sonhada na matéria celular e na memória radicular. Casa útero.

Diana, em parte, escolheu-a. Diana, em parte, rejeitou-a. Não ficou, ainda, mas sem se aperceber foi ficando. Sem olhar, ainda, a figueira que lá morava. Abundante no seu fruto e na sua profecia. Não a olhava. E o alimento caía no chão. Não o atendia. E a promessa caía no esquecimento. Não o entendia.  Diana, no faro da caça, continuava na demanda da perseguição. De arco e flecha. Na ansiedade de ficar e na pressa de chegar.

Diana não entendia, ainda, que o amadurecimento se faz na transição e que a humildade alimenta o sentido de pertença. Mas uma figueira morava ali. E a figueira via Diana e a figueira olhava por ela. Enquanto Diana continuava afligida pelo colo que tanto procurava. Que já tinha encontrado, na casa, no corpo e no corpo-sonho. No entanto, apesar da ambiguidade, e muito para além dela, Diana, por entre o bosque, ia seguindo também o luar e encontrando o seu lugar.

Na sua chegada à terapia de grupo, Diana continuava a olhar lá para fora, para a janela onde via o outono chegar, à procura, sem atender o olhar do círculo. Fugindo do reflexo do reconhecimento e da imperfeição. Mas o círculo morava lá e, imperfeito na sua forma, via Diana e olhava por ela. E sem, ainda, se aperceber, Diana foi ficando. No olhar do círculo e no olhar da figueira. Amadurecendo. Pois, o olhar também persegue e encontra-se à espreita. Pois o círculo e a figueira, quando a curiosidade e a sede de Diana a faziam espreitar, moravam lá. E nessa dádiva, o mito da falta e da falha foi dando lugar à humildade de se ser. E na humildade de entender que não se existe nem fora da maturidade que o círculo oferece nem longe do alimento maduro que a figueira oferenda, foi ficando. E o olhar atendeu e entendeu. E a voz soou e o desejo despertou.

Na ideia de corpo-sonho, o sonho reflete a vivência do corpo (Mindell, 2011). E se corpo é casa, casa é corpo. É o eco do próprio sonho e a memória do lugar. E casa é também a figueira, é também o círculo e é também a estrada que liga os dois. E no sonho e no corpo e no corpo-sonho sana-se a relação com a origem e com a paisagem. Casas-útero. Porque uma figueira mora aqui. E porque finalmente olhámos para ela e finalmente olhámos por ela. E pelo círculo.

E no sonho, no corpo e no corpo-sonho, Diana atendeu o seu lugar. O seu, na matriz, na raiz, no círculo e no todo. Atendeu que o lugar de amadurecer é o de ser guardiã. Da figueira, do corpo, do parto e da paisagem. Só na humildade de o reconhecer pode aguardar que a memória a lembre e guardar a memória que vive. Na figueira, no corpo, no parto e na paisagem. Segurando-a sem a prender, deixando que se desvele e se revele.

Só no lugar que segura sem prender, que contém e que sustém, Diana pode nascer e entender. Permitindo que, a figueira e o círculo olhem para ela e por ela, Diana pode descansar. Pois o lugar de amadurecer é também o de, no corpo, no sonho e no corpo-sonho, se saber guardada. Na profecia da figueira e na imperfeição do círculo. E Diana não precisou mais de perseguir nem de fugir. E pode agora amadurecer. E guardar a colheita, a Diana, do fruto, do olhar, da profecia, da voz e do lugar.

 

Mindell, A. (2011). The Dreambody: the body’s role in healing the self. London: Deep Democracy Exchange.

Para citar este artigo:

SEVINATE, Ana. Uma Figueira Mora Aqui. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-46/uma-figueira-mora-aqui/, número 46, 2023

 E no sonho e no corpo e no corpo-sonho sana-se a relação com a origem e com a paisagem. Casas-útero. Porque uma figueira mora aqui. E porque finalmente olhámos para ela e finalmente olhámos por ela. E pelo círculo.

Ana Sevinate

Ana Sevinate

Psicóloga clínica e psicoterapeuta

Pós-graduada em psicossíntese e em cuidados paliativos. Membro do grupo de trabalho Ecopsicologia Portugal e co-fundadora do projeto Histórias de Raiz. Formadora no curso de doulas de fim da vida. 

Autora do livro Ser Terra: o abraço da Psicologia à natureza, publicado pela Chiado. Tecida por histórias, danças nas pontas dos pés, cores, papoilas aos molhos e folhas de tília.

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