editorial de Maria Trincão Maia
Outono
2 MIN DE LEITURA | Revista 46
O outono chega, fica para trás a silly season, a época do ano que tanto se anseia. O verão foi e veio, de uma forma atípica, no meu sentir parece que chegou devagar e com força e foi se embora depressa. Há muito que sinto o pulsar do outono, a luz que muda. A luz de outono é desde de sempre a minha favorita. Uma luz quente, intimista, que envolve o mundo e volta como uma sala quente e aconchegante. Existe sempre uma pincelada de magia, como se na altura que tudo morre a vida se torna pulsante.
Para mim o outono é casa.
Mas o que para uns é uma segurança, para outros torna-se preocupante, o que do conforto da certeza da minha casa é mágico, para quem está nas ruas, empurrado pelo capitalismo dilacerante, torna-se o começo de algo ainda mais desconfortável. Vivemos uma crise da habitação inacreditável, as atrocidades repetem-se dia após dia. São centenas de relatos de despejos, de injustiças. Gostava dizer que é falta de humanidade, porém… a humanidade que hoje nos apresentam é fruto de tantas injustiças destas, de tanta conivência e de tanto interesse.
Então seguimos, seguimos quase sem olhar para o lado, porque se olharmos para o lado podemos cair.
Não existe um conforto real em alguém que vê o outro, que se interessa pelo mundo, pelo humano e não humano, não existe conforto para quem sabe que para se sentar numa cadeira outro ser vivo teve que morrer. Que os seres vivos são tratados como coisas, mas que essas coisas são em si frutos de seres vivos. Hoje vimos pessoas a serem despejadas das suas casas, não interessa a idade, são peças menores de um jogo viciado. Fragilizando mais quem já o sistema fragilizava. Carne para canhão.
E seguimos, tentando alienar o nosso instinto mais profundo de cuidado com a natureza (e os seres humanos enquanto natureza) para que possamos sobreviver. É duro.
No início desta revista falávamos de casas, escrevíamos e escreviam sobre o mundo do feng shui dentro de uma casa, dentro de quatro paredes. Em aulas falávamos várias vezes como o interior influenciava 20%, mas eram nesses 20% que atuávamos. Atenção não falo destes 20% como uma medida exata, estática ou aritmeticamente estudada, será uma aproximação, uma ideia de proporções. Mas o que será realmente estes outros tantos, os tais 80% que faltam? Será só as formas naturais e artificias? Ou será mais que isso?
Sentemo-nos com a nossa caneca de chá, no quente do nosso sofá a ver a luz de outono, mas convidemos também o desconforto… que juntos possamos dialogar, não sempre, mas as vezes suficientes para sabermos que os discursos simplistas e populistas são perigosos.
Bom Outono.
Para citar este artigo:
TRINCÃO MAIA, Maria. Outono. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-46/outono, número 46, 2023
Não existe um conforto real em alguém que vê o outro, que se interessa pelo mundo, pelo humano e não humano, não existe conforto para quem sabe que para se sentar numa cadeira outro ser vivo teve que morrer. Que os seres vivos são tratados como coisas, mas que essas coisas são em si frutos de seres vivos. Hoje vimos pessoas a serem despejadas das suas casas, não interessa a idade, são peças menores de um jogo viciado. Fragilizando mais quem já o sistema fragilizava. Carne para canhão..
Maria Trincão Maia
Editora da Revista
Pessoa, às vezes. À procura de alguma coisa que não sabe o que é. Caminhante por margens, que às vezes anda de carro ou bicicleta elétrica. Uma espécie de estudante e uma estudante de espécie. Designer mas não sabe de que... ainda. Porém, quase preferencialmente: uma metamorfose ambulante.
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