Entrelaçamentos Inegáveis

Coluna de Telma G. Laurentino

3 MIN DE LEITURA | Revista 46

Hidrocosmos, correntes abissais e lágrimas

A carência de estabelecer relações de respeito e reciprocidade com os corpos de água (o nosso e os outros), em três actos: dança, choro, mergulho.

 

Acto I

As danças do ciclo hidrológico da Vida

Chamamos-lhe Terra, mas é a água quem cobre 74.35% da superfície do planeta. A maioria (97%) são oceanos onde há cerca de 3.5 biliões de anos emergiu a vida. Levou muito tempo até que os nossos ancestrais abandonassem esses mares primordiais e evoluíssem uma relação com a terra. Há 359 milhões de anos os vertebrados deixam o mar e começa a nossa dança de entrelaçamento profundo com a água doce. Somos intimamente interdependentes dos meros 3% de água doce guardados no subsolo e à superfície da Terra.

Onde quer que estejamos, somos parte da dança transcendental do ciclo hidrológico entre a Terra, a Lua e o Sol.

A lua molda as marés enquanto o Sol aquece o oceano que evapora em nuvens que chovem água doce na Terra. A chuva corre para o subsolo, para lagos e rios e, eventualmente, encontra de novo o caminho para o mar. Pelos inúmeros intermeios complexos, passa pelas civilizações e organismos: é poluída, filtrada, transformada, transpirada de novo para a atmosfera… Sobre florestas tropicais formam-se rios aéreos gigantes de evapotranspiração botânica!

E assim o ciclo hidrológico não é já só de água “inanimada”, dissecada em H2O, é da vida toda como hidrocosmos. Dança antiga, intercelestial, colectiva. Lembra-me as danças do mastro (Maypole) onde os povos europeus seguram laços unidos a um mastro central e dançam em volta, entrelaçando-se. Laços sócio-ecológicos de muitas cores: complexos, resilientes, e também frágeis; que se entrelaçam em correntes abissais, literalmente e em metáfora.   

O sistema circulatório oceânico é formado por correntes que fluem as águas globais da superfície oceânica, à profundidade, e de volta à superfície. O movimento é entre águas de diferentes densidades que se encontram ao som de variações de temperatura atmosférica. Existem apenas duas regiões no planeta onde a água afunda até zonas abissais: O Atlântico Norte e junto da Antarctica. O frio destas regiões congela os grandes volumes de água criando os icebergs, mas o sal não é incorporado no gelo, adiciona-se ao oceano local tornando a água mais densa, “mais pesada”. Assim, a água em volta do gelo, agora super-salgada, precipita-se para as profundezas.

Essa água abissal leva consigo a radiação solar e o dióxido de carbono (CO2) que absorveu à superfície e circula no fundo do mar durante séculos antes de voltar a emergir.

Este armazenamento de longo prazo de carbono e calor fazem da corrente abissal a estabilizadora climática da Terra e o nosso maior aliado na moderação do aquecimento global. Mas a humanidade tecnocapitalista, largamente esquecida de ritmo e musicalidade ancestral, embriagada em petróleo e lucro, libertou só nos últimos 30 anos mais de metade de todo o CO2 emitido desde 1751 (1). Em tão pouco tempo, ameaçamos uma harmonia planetária com milhares de anos.

O CO2 que libertamos retem calor no planeta derretendo icebergs e glaciares. O degelo diminui localmente a densidade das águas inibindo o afundamento e podendo colapsar a circulação global. A acontecer no Atlântico Norte, uma das consequências (previsíveis) seria o congelamento do Oeste europeu enquanto o resto do mundo aquece mais. Enquanto que este cenário seja de improvável concretização neste século, hipotetiza-se que a corrente da Antártica (que afunda 250 trilliões de toneladas de água por ano) possa parar dentro de 30 anos, devido ao aquecimento global. (2)

As consequências (previsíveis) não se resumem à meteorologia. Não só calor e carbono são transportados pela corrente, mas: nutrientes, oxigênio, minerais, solo, ovos, larvas, e migrantes de muitas espécies… As correntes oceânicas são um fluxo de vida que afeta todos os habitats e habitantes do planeta.

Abandonámos a roda de dança epistemológica e perdemos o ritmo do pensamento complexo e sistémico. É hora de entrelaçar e retornar ao lugar de relação com o metabolismo da Terra. O lugar onde a água canta a canção que guia, guardada em búzios que urgem que o encostar ao ouvido. É hora de sentir os corpos de água, humanos e não-humanos, e compreender que, qual espelho d’água, a falta de respeito, responsabilidade e reciprocidade que infligimos num, infligimos em todos.

Quando os nossos ancestrais deixaram o oceano há 359 milhões de anos, alongaram-se os laços com as águas salgadas, mas não se quebraram. Dancemos. 

Que danças entrelaçadas esquecemos?

Que correntes abissais clamam pelo nosso cuidado?

Como é que podemos honrar, respeitar, reciprocar os corpos de água que nos sustêm?

 

Referências

(1)https://ieep.eu/news/more-than-half-of-all-co2-emissions-since-1751-emitted-in-the-last-30-years/

(2)https://e360.yale.edu/features/climate-change-ocean-circulation-collapse-antarctica

 

Sugestão para dança em gratidão às águas

What the water gave us – Florence + The Machine

https://www.youtube.com/watch?v=am6rArVPip8

Para citar este artigo:

G. LAURENTINO, Telma. Hidrocosmos, correntes abissais e lágrimas. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-46/hidrocosmos-correntes-abissais-e-lagrimas/, número 46, 2023

As consequências (previsíveis) não se resumem à meteorologia. Não só calor e carbono são transportados pela corrente, mas: nutrientes, oxigênio, minerais, solo, ovos, larvas, e migrantes de muitas espécies… As correntes oceânicas são um fluxo de vida que afeta todos os habitats e habitantes do planeta.

Telma G. Laurentino

Telma G. Laurentino

Bióloga

Educadora
Escritora
Artesã intuitiva
Biodiversidade – Evolução & Genética – SocioEcologia – Educação inclusiva –
Pertença
TelmaGL.com
Telma.laurentino@gmail.com