artigo de Maria Trincão Maia

Viver Entre Ausências

4 MIN DE LEITURA | Revista 45

Para onde vai a dor do luto não aceite “socialmente”? Onde existe lugar para reclamos os lutos profundos, dolorosos e silenciados?

A nível legal, o termo para dias de luto a que um trabalhador tem direito, chama-se Período de Nojo. Uma tabelinha hierarquicamente organizada pela importância na concepção actual sobre o que é família. Onde cônjuges, pais e filhos tem o número máximo de dias, depois entram também os laços criados por casamento, enteados, genros, noras, madrastas e padrastos. Separam filhos e adoptados o que por si só causa uma certa angústia, visto que filhos são: adoptados ou paridos. Seguido dos irmãos, avós, netos e na mesma lógica os laços criados com uniões como cunhados, abrem ainda um pouco mais para bisavós, bisnetos e primos. E, por fim, sem direito a dias vêm os tios e sobrinhos. Talvez este parágrafo sirva apenas para mostrar que os nossos afectos são categorizados por uma linha de sucessão para fins reprodutores e de constituição familiar conservadora.

Mas não é de morte no sentido biológico que quero escrever. Não é do luto pela ida de alguém, ou dos dias a que legalmente temos direito. É do lugar da dor, da perda, do sofrimento e do luto para tantas ligações que perdemos.

Pouco se fala do luto de um fim de amizade, rematando com severidade: se já não é teu amigo é porque nunca o foi, não existe ex-amigo. Colocando uma aura ditatorial nas relações afectivas com os amigos, uma visão absolutista sobre que o amigo deve ser, sem que enquanto seres individuais possam ter caminhos diferentes. A imaculação da amizade, sem nódoa e sem dúvidas. Estas apressadas conclusões sobre a dor alheia do fim de uma amizade, silencia uma dor profunda, esmagadora que fica com uma alma penada sobre todas as outras amizades. Não existe espaço para que haja luto. Mas esta dor é real, e quantos de nós não deixaram de ter algum amigo próximo? Quantos de nós já não nos afastámos de alguém ou alguém se afastou de nós? Uma briga que dá origem a uma ruptura para sempre? Que um evento dite o fim de uma amizade abruptamente? A dor sem espaço, voz, ou identificação com o mundo exterior.

As grandes histórias de amizade que acabam não vendem tão bem como as grandes histórias de “amor”, mas será que não existem em igual número e com igual dor e sofrimento? Como aceitamos o nosso próprio luto por uma amizade? Como nos reconstruímos nós depois do fim de grandes amizades?

No outro dia uma amiga disse-me: “faz-me confusão como é que alguém mantém o mesmo grupo de amigos desde de sempre, eu já fui tantas pessoas e já vivi tanta coisa que não saberia o que dizer a quem conheci com 6 anos.” Uma visão libertadora sobre o fim de amizades, grupos de amigos, encarando-a como algo natural que acontece, sem lhe tirar a dor que isso acarreta ou sem um julgamento prévio sobre que existe algo de profundamente errado com quem não as mantém. Amigos são para a vida?! Sim alguns, outros não, e é preciso viver o luto dessas relações que findam.

Existe também o luto por relações familiares, não por morte, mas por zangas, desentendimentos ou as famosas partilhas. Um amigo pergunta sempre quando uma família se dá muito bem se já fizeram partilhas. As partilhas funcionam quase como uma peneira, as relações frágeis mantidas a força muitas vezes calando desrespeitos, abusos, toxicidade explodem todas, ficando tudo às claras. A ideia de manter a família unida, evitar zangas para que no Natal e datas específicas se mantenha todos a mesa, para que a casa não esteja vazia. Porém, quando essas relações familiares, tóxicas ou não, implodem um vazio apodera-se. Irmãos zangados, tios que não se falam, primos desavindos. Existe uma normalização nesta quebra de relações, mas não existe espaço para o debruçar sobre a dor, sobre o luto. As frases ditas como “é o que não falta para aí” sobre zangas familiares quase que invalidam que exista um dor profunda e dilacerante. Que remete as pessoas para um lugar de questionamento de pertença, porque é em família em a sociedade nos diz que é o sítio a que nós pertencemos, que nos aceita e ama, está agora partida.

Para onde vai o luto destas relações? Qual o espaço que existe? E se nunca existir o fazer das pazes? Seremos estranhos conhecidos ao longo do tempo com quem partilhamos tantas memórias e tão boas, como ascendência comum?

Henrique Mendes no início dos anos 90 apresentava o Ponto de Encontro, um programa de televisão que reunia pessoas que por algum motivo tinham perdido o contacto, zangaram-se e na impossibilidade de pontes de comunicação passavam-se anos, décadas sem contacto. Hoje as redes sociais possibilitam, em grande parte, a continua observação deste conjunto de pessoas que, por norma não é só uma, que saíram das nossa vida. Se existe uma zanga com um tio, toda a família nuclear desse tio também sai de cena, e assim por diante. O continuar a acompanhar esses familiares nas redes sociais traz sentimentos agridoces, pois aquilo que nos era próximo é remitido para um lugar distante de estranhos.

Saindo das relações puramente humanas, podemos olhar para as relações humanos-não humanos. Os lutos pelos animais de estimação tem sido cada vez mais aceite, porém os lutos dos humanos e dos lugares nem são reconhecidos como possíveis. Quantas vezes nos aconteceu que lugares que nos são queridos são destruídos, vedados, e que isso nos provoca uma dor que muitas vezes não reconhecemos. Às vezes como as zangas das pessoas vão também os lugares, às vezes com a pratricidade da sociedade também vão os lugares. Não falo só de casas, falo de árvores, lugares secretos e não secretos. Conheço quem não passe por certos lugares porque a dor é tão grande que as lágrimas não se contêm. Porque não existe um espaço para que se compreender que as relações com os lugares são mais que materialismo ou utilidade. Somos cuidadores, guardiões de lugares, sejam eles casas, terrenos, árvores, lagos. Somos no nosso primeiro instante cuidadores e construtores de paisagens com os castores, como tão bem a Sofia Batalha relembra. A nossa relação com os lugares são muito mais profundas do que aquilo que nos é permitido pela sociedade.

Quantos de nós relembram aquele lugar de infância a que deixamos de ir? Quantos de nós ainda carrega a mágoa de não poder ir mais a um sítio porque a vida moderna se pôs de permeio?

Trago para o diálogo os lutos por cumprir, o lugar para que esses lutos venham independentemente do desfecho ou a causa deles. A permissão da falta do amigo, do familiar ou do lugar, que não nos permitimos sentir, ou porque passou muito tempo, ou porque achamos que não devemos. Seja pelo que for, ele existe, não vai a lado nenhum, como nenhuma perda vai a lado algum apenas aprendermos a viver com a ausência.

Não existe hierarquia interna para os afetos por mais que o exterior se esforce a impô-la. Aprendemos a viver com a ausência ou mandamos para debaixo de um tapete que começa a ter mais ausências do que chão? 

Para citar este artigo:

TRINCÃO MAIA, Maria. Viver entre ausências. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-45/viver-entre-ausencias/, número 45, 2023

Não existe hierarquia interna para os afetos por mais que o exterior se esforce a impô-la. Aprendemos a viver com a ausência ou mandamos para debaixo de um tapete que começa a ter mais ausências do que chão? 

Maria Trincão Maia

Maria Trincão Maia

Editora da Revista

Pessoa, às vezes. À procura de alguma coisa que não sabe o que é. Caminhante por margens, que às vezes anda de carro ou bicicleta elétrica. Uma espécie de estudante e uma estudante de espécie. Designer mas não sabe de que... ainda. Porém, quase preferencialmente: uma metamorfose ambulante.

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