Ecoespiritualidade

Coluna de Jorge Moreira

9 MIN DE LEITURA | Revista 45

Teo(Sofia) – Chamada à Ação

Na Missão de Jane Goodall

Parte III

 

 

[Sobre a experiência mística de Jane Goodall em Notre-Dame]
Só recentemente comecei a perguntar-me se havia alguma mensagem específica para mim, transmitida sem palavras pela música poderosa, uma mensagem que absorvi, mas que ainda não estava preparada ou capaz de a interpretar. E agora, por experiência e reflexão, acredito que houve de facto uma mensagem. Muito simples: cada um de nós importa, tem um papel a desempenhar e faz a diferença. Cada um de nós deve assumir a responsabilidade pela sua própria vida e, acima de tudo, mostrar respeito e amor pelos seres vivos ao nosso redor, especialmente uns pelos outros. Juntos, devemos restabelecer as nossas conexões com o mundo natural e com o Poder Espiritual que está à nossa volta. E então podemos avançar, triunfantes e alegres para o estágio final da evolução humana — a evolução espiritual. Jane Goodall.

A vida, o universo e a consciência são os grandes mistérios que me fascinam. Desde que me lembro, vejo-me à volta com as questões existenciais, nomeadamente sobre o propósito da vida, a precedência ou a continuidade de algum tipo de consciência após a existência, a presença de outras entidades inteligentes no nosso planeta, além da Terra ou ainda noutras dimensões espaciotemporais. Depois há a questão ética que sempre me assolou: como devo agir perante a complexidade da vida? Retirando a tópico da inteligência atribuída a outras espécies neste globo, que teve descobertas interessantes nas últimas décadas, a ciência (ainda) não tem respostas para as restantes questões. Estes vazios científicos fizeram-me procurar explicações noutros saberes. Frequentei desde cedo algumas escolas iniciáticas, estudei as diversas religiões e o esoterismo, mergulhei na arqueologia, na sabedoria tradicional e nas civilizações antigas. Li muito. Pratiquei imenso. Mas nada foi tão fascinante para mim como o contato com a Teosofia. Quando comecei a frequentar o Ramo Dharma no Porto e a ler as obras teosóficas, a ressonância foi imediata. Parecia que já conhecia o que lia. Era como um relembrar de algo que misteriosamente habitava em mim, mas que não me lembrava de ter estudado anteriormente.

Teosofia

A Teosofia é ancestral. Contudo, o termo, que significa sabedoria divina, começou a ser utilizado por Amónio Sacas e os seus discípulos, sendo Plotino o mais conhecido. Eram filósofos neoplatónicos e filaleteus, que procuravam a verdade e fundaram a Escola Teosófica Eclética. A versão moderna da Teosofia surgiu no século XIX, com a criação da Sociedade Teosófica e o lançamento das obras de Helena Petrovna Blavatsky, que compilavam muito do conhecimento adquirido pela Humanidade ao longo dos tempos, mas que se encontrava ‘perdido’ ou oculto aos olhos das sociedades da altura. A Sociedade Teosófica, inspirada na matriz original da Grécia Antiga, adotou o lema “Não há religião superior à verdade” e o princípio da Fraternidade Universal. Espalhada pelo mundo, reúne estudantes que procuram as mesmas respostas existências que ainda me inquietam. A Teosofia, ao entrelaçar sem dogmas a essência das diversas religiões, filosofias, ciência contemporânea, sabedorias antigas e arte, apresenta-nos um esquema complexo de como as Leis que regem o Universo impulsionam a evolução da vida através dos Globos, Reinos, formas e espécies. Ao nível humano, apresenta alguns pressupostos emaranhados como base de estudo: a evolução, o karma e a reencarnação. No cerne desta plataforma de sabedoria encontramos a espiritualidade e a ética cósmica.
Fernando Pessoa teve uma crise intelectual quando, ao traduzir as obras teosóficas, ficou a conhecer a “essência do sistema” teosófico. Diz Pessoa numa carta a Mário de Sá Carneiro:

O carácter extraordinariamente vasto desta religião-filosofia; a noção de forca, de domínio, de conhecimento superior e extra-humano que ressumam as obras teosóficas, perturbaram-me muito. (…) A possibilidade de que ali, na Teosofia, esteja a verdade real me «hante». (…) A Teosofia apavora-me pelo seu mistério e pela sua grandeza ocultista, (…) atrai-me por se parecer tanto com um «paganismo transcendental».

A Teosofia inspirou cientistas, como Einstein; pintores, como Mondrian, músicos como Scriabin, pedagogas como Montessori ou pacifistas como Gandhi. O mesmo terá acontecido a Jane Goodall, que desde cedo começou a frequentar semanalmente cursos sobre Teosofia. Nas suas palavras:

Fiquei especialmente atraída pelos conceitos de karma e reencarnação, porque ainda estava a tentar entender muito dos horrores da guerra (…). Eu nunca fui capaz de acreditar que Deus nos daria a nós, pobres humanos frágeis, apenas uma oportunidade de realização — que seríamos designados para algum tipo de inferno porque falhamos durante uma experiência de vida mortal. Afinal de contas, a duração de uma vida humana medida em relação à eternidade — passa mais rápido do que um milionésimo de segundo. Portanto, os conceitos de karma e reencarnação faziam sentido para mim.
A mulher que ensinava o nosso curso de Teosofia era carismática (…) e eu achava-a brilhante. Ela pegava numa pequena ideia e desenvolvia-a em mil direções diferentes. (…) Muito do que aprendi nessas aulas foi muito útil para as minhas próprias crenças pessoais em constante evolução sobre Deus e o universo”.

A Teosofia é transformadora e dá-nos um sentido para a vida, mesmo quando atravessamos situações nebulosas, paradoxais ou dores insuportáveis. Faz-nos resilientes e atentos aos pormenores que nos levam à serendipidade ou perceber a sincronicidade contida na porosidade dos eventos.

A Teosofia em Jane Goodall

A Teosofia é um dos pilares mais fortes que sustenta a espiritualidade em Jane Goodall e que a fez ultrapassar os momentos particularmente difíceis, sem deixar de olhar para as oportunidades que a vida lhe trazia nessas conjunturas. Por exemplo, depois de um período emocionalmente triste, na sequência do divórcio, Goodall aproveitou a oportunidade da sua presença em Paris – na conferência da UNESCO sobre agressão, em 1974 – e foi visitar a catedral de Notre-Dame. As catedrais antigas, a par da Natureza, sempre foram locais sagrados para Goodall. Por isso, não foi por acaso que em Notre-Dame teve um dos êxtases místicos mais interessantes da sua vida, que a levou novamente às preocupações com a filosofia e ao sentido da vida:

Não havia muitas pessoas por perto e lá dentro estava [um ambiente] calmo e silencioso. Olhei com admiração repousada para a grande rosácea, que brilhava ao sol da manhã. De repente, a catedral encheu-se com grande volume de som: um órgão a tocar magnificamente para um casamento que acontecia num canto distante. Tocata e Fuga em Ré Menor de Bach. Sempre adorei o tema de abertura; mas na catedral, preenchendo toda a vastidão, parecia entrar e possuir todo o meu ser. Era como se a própria música estivesse viva. (…) um momento de eternidade subitamente capturado. (…) Como poderia eu acreditar que as rotações aleatórias de pedaços de poeira primitiva levaram até aquele momento no tempo – a catedral a subir ao céu; a inspiração coletiva e a fé daqueles que fizeram com que ela fosse construída; o advento do próprio Bach; o cérebro, seu cérebro, que traduzia a verdade em música; e a mente que poderia, como a minha de então, compreender toda a inexorável progressão da evolução? Como não posso acreditar que isso foi resultado do acaso, tenho de admitir o ‘anti-caso’. E assim devo acreditar num poder orientador do universo – noutras palavras, devo acreditar em Deus.

A Teosofia admite um Princípio Orientador que emana do Absoluto, longe da ideia de um deus antropomorfizado representado por algumas religiões. Podemos encontrar alguns ecos desse Absoluto nas conceções filosóficas de Espinoza e Einstein, e.g. “Acredito no Deus de Spinoza, que se revela na harmonia das leis do mundo” (Einstein, 2011, p. 325). Mas a Teosofia também nos revela um espírito de missão. Não confundir com envangelização ou proselitismo, mas de ação em nós – no aspeto evolutivo; e no mundo – tornando-o um local mais belo e harmonioso. A experiência que Goodall teve em Notre-Dame vai nesse sentido. Não surgiu de imediato, mas compreendeu-a mais tarde:
Acho que talvez minha experiência em Notre-Dame tenha sido uma espécie de chamado à ação. Acho que ouvi, de uma forma adequada para os ouvidos mortais, a voz de Deus – embora, na época, não pensasse nisso dessa forma. E eu não ouvi nenhuma palavra, apenas o som. Palavras ou não, a experiência foi poderosa e serviu para me lançar de volta ao mundo em que nasci, o século XX com todos os seus problemas. Isso ajudou-me a perceber que o poder espiritual que eu sentia tão fortemente no mundo selvagem e belo da floresta era o mesmo que eu tinha conhecido na minha infância, nos dias de Trevor, nos dias em que passava longas horas nas antigas catedrais. De facto, quando olho para trás, a minha visita a Notre-Dame foi um marco na minha trajetória.
Na primeira citação deste artigo podemos perceber que a missão de Jane Goodall é a evolução espiritual, assumindo a responsabilidade pela nossa própria existência e restabelecer as nossas conexões com a Natureza. Para isso, ela revela ao mundo a importância da dimensão espiritual na sua vida e a necessidade de revertermos a destruição do mundo natural.
Outro período dramático na vida de Jane Goodall, foi a doença e morte do seu segundo marido, Derek. A dor foi tão forte que até fez questionar a sua fé. Mas, também aqui a Teosofia teve um papel preponderante na sua recuperação e entendimento dos processos da vida e pós-vida.

Naquela noite, algo ainda mais extraordinário aconteceu. Eu estava deitada na cama que havíamos partilhado, ouvindo o som das ondas na praia, os grilos, todos os sons familiares da noite. Eu não esperava adormecer, mas o sono veio rápido. E então, num determinado momento durante a noite, acordei. Será que acordei? De qualquer forma, Derek estava lá. Ele estava a sorrir e [encontrava-se] muito, muito vivo (…). Disse-me coisas importantes, coisas que eu deveria saber, coisas que eu deveria fazer. (…) Eu estava totalmente exausta quando me levantei – mas mais feliz, mais capaz de enfrentar. Sempre acreditei que existe um estado de ser que não termina com a morte física.

Mas a história não termina aqui. Houve mais dois acontecimentos que Goodall descreve, que ocorreram na noite da morte de Derek, que não têm explicação à luz da ciência. O primeiro envolveu o seu filho Grub, que na altura tinha treze anos e estava num colégio, longe, no Reino Unido. Ele não sabia que Derek estava perto da morte e na noite fatal Grub teve um sonho muito vívido:

No seu sonho, Olly [tia de Goodall] chegava à escola e falava com ele. “Grub, tenho algo muito triste para te contar. Derek morreu ontem à noite”. Ele adormeceu novamente, mas mais uma vez foi acordado pelo sonho, e Olly novamente repetiu a sua mensagem. Quando isso aconteceu pela terceira vez, ele ficou angustiado e não conseguiu dormir mais. Na verdade, ele foi até à diretora da escola para lhe dizer que estava a ter pesadelos terríveis, embora não tivesse dito quais eram. De manhã, Olly chegou à escola. Vanne [mãe de Goodall] estava na Alemanha comigo [Jane Goodall], tendo chegado no dia anterior após um pressentimento de que precisava ver Derek. Olly levou Grub para o jardim e disse-lhe que tinha uma notícia triste. “Eu sei”, disse ele. “Derek está morto, não está?” Olly ficou confusa – até que ele contou o seu sonho.
A outra ocorrência envolveu Lulu, uma menina da mesma idade que Grub, filha de pais amigos de Derek e Goodall, que sofria de síndrome de Down. Na noite em que Derek morreu, ela acordou de madrugada e correu para a sua ama Mary, que se encontrava a dormir.

“Mary,” disse ela, com urgência. “Acorde, por favor. Aquele homem veio [ter comigo] e gosta de mim. Ele está a sorrir.” Mary, meio acordada, disse a Lulu que ela estava a sonhar e que voltasse para a cama. Mas Lulu insistiu. “Mary, por favor, venha. Eu quero mostrar-te. Ele está a sorrir.” Por fim, Mary sentou-se, resignada. “Lulu, diga-me o que quer dizer. Quem é esse homem que está a sorrir para ti?” “Não me lembro do seu nome”, disse Lulu. “Mas ele vem com Jane e anda com uma bengala. E ele gosta de mim. Ele gosta realmente de mim.

Duas crianças e uma mulher que Derek amava e se encontravam em diferentes partes do mundo. Estas sincronicidades desafiam qualquer explicação científica. Nas palavras de Goodall, “a ciência não possui as ferramentas adequadas para a dissecação do espírito”. Aqui, a Teosofia faz a diferença, ao introduzir outros saberes, outros instrumentos de perceção, de observação e meditação. Tentar olhar o mundo sem filtros. Por exemplo, como Goodall faz:

Deitei-me ali, parte da floresta, e experimentei de novo aquele enriquecimento mágico do som, aquela riqueza adicional de percepção. Eu estava profundamente ciente dos movimentos secretos nas árvores. Um pequeno esquilo listrado subiu em forma de espiral, à maneira dos esquilos, cutucando as fendas na casca, olhos brilhantes e orelhas redondas em alerta. Um grande abelhão preto aveludado visitou as pequenas flores roxas, a seção final de seu abdomen brilha num vermelho alaranjado cada vez que voava por um dos trechos de luz do sol que malhava a floresta. É praticamente impossível descrever a nova consciência que surge quando as palavras são abandonadas. A pessoa é transportada de volta, talvez, ao mundo da primeira infância, quando tudo é novo e maravilhoso. As palavras podem melhorar a experiência, mas também podem retirar muito dela. Vemos um inseto e imediatamente abstraímos certas características e o classificamos – uma mosca. E nesse mesmo exercício cognitivo, parte da maravilha se perde.

Esta consciência desperta não é fácil de adquirir, mas pode ser desenvolvida através de técnicas de meditação. A propósito diz Goodall:

Uma das tarefas que considerei mais difíceis durante as minhas aulas de Teosofia foi a supressão do pensamento circulante, o primeiro passo no caminho para experimentar a verdadeira consciência. Houve um tempo em que eu praticava com frequência; depois, na pressão da vida, perdi a arte. Mas naquele dia senti o velho mistério se apoderar de mim — a cessação do barulho interior. Era como voltar a um lindo sonho.
Cessar o barulho interior para uma ação mais harmoniosa no mundo é espiritualidade proativa.

Goodall é uma velha e bela Alma. Certamente que teve várias fontes de inspiração para a sua vida, mas tem na Teosofia a base da sua entrega à evolução espiritual e à ação no mundo natural, já que a Teosofia mostra um universo interligado física e espiritualmente. Uma ecologia cósmica, eco-espiritual, onde os seres são como companheiros de viagem, irmãos nos seus diversos estados evolutivos. Conhecer esta realidade, esta (Teo)Sofia, impele-nos para ação (pacífica) em nós e no mundo.

 

 

Referências Bibliográficas

  • Blavatsky, H. P. (1973). A Chave da Teosofia. Editora Três.
  • Einstein, A. (2011). The Ultimate Quotable Einstein. In A. Calaprice (Ed.), Choice Reviews Online (Vol. 48, Issue 11). Princeton University Press. https://doi.org/10.5860/choice.48-6340
  • Goodall, J., & Berman, P. (1999). Reason for Hope – A Spiritual Journey. Warner Books.
  • Pessoa, F. (1915). Carta a Mário de Sá-Carneiro – 6 Dez. 1915. Arquivo Pessoa. http://arquivopessoa.net/textos/517

Para citar este artigo:

MOREIRA, Jorge. Teo(Sofia) – Chamada à Ação – Na Missão de Jane Goodall – PARTE III. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-45/teosofia-chamada-a-acao/, número 45, 2023

Goodall é uma velha e bela Alma. Certamente que teve várias fontes de inspiração para a sua vida, mas tem na Teosofia a base da sua entrega à evolução espiritual e à ação no mundo natural, já que a Teosofia mostra um universo interligado física e espiritualmente. Uma ecologia cósmica, eco-espiritual, onde os seres são como companheiros de viagem, irmãos nos seus diversos estados evolutivos. Conhecer esta realidade, esta (Teo)Sofia, impele-nos para ação (pacífica) em nós e no mundo.

Jorge Moreira

Jorge Moreira

Ambientalista e Investigador

Licenciado em Ciências do Ambiente, Minor em Conservação do Património Natural, mestre em Cidadania Ambiental e Participação, pela Universidade Aberta, e Doutorando em Sociologia pela Universidade de Coimbra. É bolseiro FCT e investigador do Centre for Functional Ecology, Science for People & the Planet da Universidade de Coimbra.
É vice-presidente da FAPAS - Associação Ambientalista para a Conservação da Biodiversidade; dirigente da Sociedade de Ética Ambiental, dos movimentos cívicos Alvorecer Florestal e Aliança pela Floresta Autóctone.
É autor de vários artigos dedicados ao ambiente e voluntário em inúmeras ações de defesa, conservação, promoção e recuperação do património natural.
Tem desenvolvido investigação nas áreas da Ética Ambiental, Educação Ambiental, Sustentabilidade, Alterações Climáticas, Ecologia Profunda e Ecologia Espiritual, onde tem realizado conferências e promovido os temas.

shakti@sapo.pt