Onde mora o coração, histórias e paisagens
Coluna de Ana Sevinate
3 MIN DE LEITURA | Revista 45
A Estrela do Mar
Este texto nasce do testemunho do espaço terapêutico, da beleza imensa de uma história de vida que se expande a cada inspiração e que nos inspira a cada expiração.
Segue inteira, com o coração ao centro. Os seus braços apontam para todas as direções, mas segue inteira. Sabe bem que não basta ser desejada, por isso segue inteira. Sabe que se seguir todos os apelos e todos os ecos de todas as correntes se irá rasgar.
A vontade, a sua que é a do mar, segue ao centro. Sabe que o mar é para além dela, ao mesmo tempo que sabe que existe um lugar, no mar, que só a ela pertence. Uma rede inteligente que liga o sentido da sua existência à vontade das marés. E, por isso, a direção da estrela é, inconfundivelmente, a direção do mar.
A vontade do mar revela-se na textura macia da estrela. Pois na porosidade do seu tecido habita a direção da própria água. Dança no balanço fluido e aquático. Dança no movimento que os seus sentidos atentos orientam. Na perceção atenta, rítmica e ponderada que indicam o próximo gesto. Escuta e ondula, sem se precipitar. Dança no movimento do diálogo profundo entre a água salgada que a envolve e as lágrimas que banham a sua alma.
Uma vontade “que não nega a vulnerabilidade nem impõe a perfeição” (D’Alcor, 2014). – “Estrela”, diz o mar, “atravessa o espaço e os corais, solta-te agora da rocha que te agarra e atravessa”. E no suspenso da travessia, agita-a o medo e a antecipação. E na força da corrente, transporta-a a leveza alada da liberdade. Pois na sua fragilidade revela-se a força da presença, em cada instante, em cada braço que se move, que se agarra e que se solta.
E antes do movimento, o respiro. Para que possa ir inteira. Para que o tecido permeável de que é feita possa ver, escutar, saborear e cheirar, antes do gesto e antes do movimento e antes da dança. Orientando-os. Vendo, escutando, saboreando cada gota de água do mar e cada lágrima salgada. E de cada vez que respira, o mar expande-se e de cada vez que o mar se expande, a estrela respira e existe mais. E o mar respira mais. E emociona-se mais.
Roberto Assagioli (2007) refere dois níveis de tomada de consciência e de vontade, pessoal e transpessoal. “Tal como o fermento da massa, a vontade transpessoal, transforma sem destruir a vontade pessoal, de forma a se integrar na vontade universal. A este nível, a psicossíntese torna-se simultaneamente, individual, social e universal.” (D’Alcor, 2014, p.80). E em cada ponta do nosso diagrama estelar, seguem a imaginação, a emoção, a intuição, o pensamento, o desejo, a sensação. E para não rasgar, tal como a estrela-do-mar, o centro encontra a harmonia enquanto existe banhada na vontade da vida radicular que nos sustém e integra. Pois a síntese é a das pontas e é a do mar. É a nossa e é a da paisagem universal. Sem ela, sobrevivemos quebrados.
Stella chegou à consulta pela experiência de uma existência rasgada e pela procura ávida do coração. Almejando a possibilidade da escuta atenta. Porém, debaixo do ruído violento da vergonha e da intransigência, revelava-se uma vontade amorosa e integra. No sofrimento trazido pelo conflito, podia ouvir-se o borbulhar da imensidão oceânica. Em dança e escuta atenta, rítmica e ponderada, fomos dando lugar ao ruído e fomos dando lugar à voz baixinha ao centro. Que apesar do ruído, não passava despercebida. Fomos dando lugar às feridas e às suturas e fomos dando lugar ao sublime que toca a superfície da água e ilumina o fundo. A cada inspiração, a ampliação da consciência, a cada expiração a oportunidade do vazio e do luto. E a voz ao centro cada vez mais nítida e cada vez mais firme. Trazendo, aos pouquinhos, a possibilidade e a esperança da integração. Orientando a vontade e a direção. Dançando e seguindo inteira. O corpo, aos pouquinhos, deixando o balanço do desamparo e abraçando a textura dos sentidos. A cada inspiração a força da síntese. A cada expiração, a permissão à sensibilidade.
Stella vai sabendo ser, cada vez mais, a estrela-do-mar que sempre foi. E de cada vez que respira, o mar expande-se e de cada vez que o mar se expande, Stella respira e existe mais. E o mar respira mais. E emociona-se mais.
Referências
Assagioli, A. (2007). The Act of Will. London: The Psychosynthesis and Education Trust.
D’Alcor, J. (2014). Psicossíntese: Uma Psicologia Integral. Lisboa: Edições Colibri.
Para citar este artigo:
SEVINATE, Ana. A estrela do mar. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-45/a-estrela-do-mar/, número 45, 2023
E em cada ponta do nosso diagrama estelar, seguem a imaginação, a emoção, a intuição, o pensamento, o desejo, a sensação. E para não rasgar, tal como a estrela-do-mar, o centro encontra a harmonia enquanto existe banhada na vontade da vida radicular que nos sustém e integra. Pois a síntese é a das pontas e é a do mar. É a nossa e é a da paisagem universal. Sem ela, sobrevivemos quebrados.
Ana Sevinate
Psicóloga clínica e psicoterapeuta
Pós-graduada em psicossíntese e em cuidados paliativos. Membro do grupo de trabalho Ecopsicologia Portugal e co-fundadora do projeto Histórias de Raiz. Formadora no curso de doulas de fim da vida.
Autora do livro Ser Terra: o abraço da Psicologia à natureza, publicado pela Chiado. Tecida por histórias, danças nas pontas dos pés, cores, papoilas aos molhos e folhas de tília.
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