O Canto do Verbo
Coluna de Ana Alpande
2 MIN DE LEITURA | Revista 44
Para ti que sofres…
Para ti que sofres,
se um dia leres estas palavras,
quero que saibas que as escrevo
com grande ousadia,
perante este colectivo pesar.
Acabas de chegar ao clube, quase transparente,
quase anónimo,
das mães que perderam seus filhos…
novos ou velhos
nascidos ou não nascidos
pequenos ou crescidos
causa esperada ou de evento inesperado…
Não imagino o peso do ar que aspiras,
enquanto te sentas à sombra, do maior dos vazios.
Talvez a única razão
pela qual
o ar se atreve a seguir o seu fiel caminho
seja simplesmente
porque os teus pulmões não conseguem distinguir
se a tua Alma se sente viva
ou morta.
Uma parte tua
provavelmente
está apartada da vida,
outra flutua
acima de todos nós,
incógnita,
vendo tudo de cima,
como se fosse um filme.
Se reparares, o teu peito move-se teimosamente,
ainda que não o sintas,
ainda que a única
sensação possível no teu corpo
seja
uma dor insuportável,
de tamanho que não me cabe na imaginação.
Recuso-me a esticar a minha imaginação para a perceber,
confesso que tenho medo que me engula.
Ainda assim,
eu e o meu medo,
sentamo-nos contigo
e observamos a tua respiração pesada,
o teu peito tão pequeno,
que mal lhe cabe o ar dentro.
Mas existe ar
e existe sangue,
que lentamente cumpre com a sua sagrada peregrinação
dentro/fora/dentro,
como sempre foi e sempre será,
para todas as criaturas dotadas de coração pulsante.
Esse sangue que secou no tronco jovem e generoso do teu filho.
Sento-me quieta ao teu lado,
muda com o peso do ar que esmaga a sala.
O único oxigénio disponível para mim,
neste momento
está nestas palavras que te escrevo mentalmente.
Ofereço-te o meu ombro sólido
respirando um pouco mais fundo que a tua capacidade,
com a esperança que apesar da minha mudez,
o meu peito possa
silenciosamente
dar a mão ao teu
e que juntos possam ousar um pouquinho mais de ar.
A dor e a dormência não vão desaparecer,
o teu colo continuará vazio,
tudo isto e muito mais a que tens direito
na travessia do teu luto,
será teu,
mesmo se ousares abrir
ligeiramente
o teu corpo
ao ar que ambas partilhamos.
Uma respiração de cada vez
um toque gentil da brisa fresca
que despertará um poro de cada vez
um sabor que despertará
papila a papila, de cada vez.
Até que o teu corpo esteja pronto, para voltar a receber-te.
O único oxigénio disponível para mim,
neste momento
está nestas palavras que te escrevo mentalmente.
Ana Alpande
Colunista e Autora regular da Revista
Terapeuta de Trauma, Artista, Astróloga, Contadora de Histórias
A minha missão é dizer não ao desperdício da beleza e procurar contribuir para uma estética que promova a criação de espaços quotidianos que fertilizem o território da Alma.
Actuo como educadora, terapeuta de trauma e facilitadora de grupos terapêuticos de expressão artística e co-regulação emocional.
O principal foco de estudo e reflexão de momento é o trauma individual, transgeracional e colectivo, tendo como pano de fundo a questão do vínculo, nas suas variadas afetações e expressões.