Onde mora o coração, histórias e paisagens
Coluna de Ana Sevinate
2 MIN DE LEITURA | Revista 44
O Silêncio Feito Paisagem
“E se cansada de espera com as mãos sujas de terra
Sonhava ideias tolas
Na esperança de um grito mudo
O fio tinha um tom rubro de um campo de papoilas”
Virgínia Dias
“In these moments, the mood of melancholy becomes the common bond
which ties you to the fabric of all creation.”
Robert Romanyshyn
Ao primeiro soslaio, a escassez. Da água, do fresco, do esconderijo. No amarelo-castanho do fardo procura-se o viço da seara. Esgrimamos com a tristeza que pacientemente fica e embala. O desponto das papoilas confunde-nos pela insensatez e pela audácia. Sem que consigamos reconhecer o viço, persistimos na procura.
Tenho o Alentejo nos pés, em algumas das costelas e na massa da alma. E só agora vou chegando. O seu âmago, o da paisagem, não se alcança. Não se agarra. Chega-se. Poisa-se. E depois? E depois, ou se parte ou se rasga. Ficar, só é possível rasgando o veludo e a ilusão. Não se foge. Não há por onde. Vai-se ficando. Rasgando o peito na entrega.
E, no entanto, melancolia não é desalento. Desalento é sonho sucumbido. É desmaio, é luto embotado, pela insistência da procura. A paisagem torna-se implacável. Melancolia é sonho vivido e lembrado. É o ninho do vínculo, é contemplação ecológica. A paisagem torna-se canto.
Devarzinho, a melancolia vai fundando a raiz e a beleza de uma longura que não termina diz que só agora estamos mais perto. A Azinheira, pausadamente, começa a conversar sobre outras vontades. E oferenda-nos com poemas e cantigas. O Sobreiro, depois da espera, retira o seu chapéu quando vê, por fim, a sua alma no nosso olhar. Oferenda-nos água no cocharro e o ar plasma-se suspenso. A força da terra é a da rebeldia intrépida e teimosa. O seu consolo é o do gerúndio que apela à paciência, valida a transição e acompanha o tempo.
Buscamos então a flora e a fauna do silêncio. Que ficam a descoberto na ausência da sombra. Essa, só mesmo a que vem do céu. E com as sombras despidas pela luz quente do dia, é inevitável recordar. As riscas da perdiz, a bondade do ribeiro e a serenidade da bolota. Porque, no entretanto, o coração almejante vai abrindo e o corpo desenhado vai revelando. E ficando.
Ficando na possibilidade eterna do barro e na simplicidade tosca do cal. Mas para isso é preciso quebrar a superfície dura da amargura, da arrogância e da terra seca. Porque no fundo, a fertilidade aguarda em segredo. Porque no fundo, correm os veios das águas ancestrais. Porque no fundo, brilham os olhos de sol e os rezos na massa do pão.
Parta-se assim o desalento. Quando a paisagem que já existia no mapa da pele, mas oculta, se vai revelando à medida do gerúndio. Não como decalque, mas como tatuagem. De dentro para fora e de fora para dentro.
Na humildade quieta de quando, por fim, entendemos que afinal foi a terra que nos agarrou. E voltamos a olhar as papoilas. Na humildade quieta de quando, por fim, entendemos que afinal foram elas que nos encontraram.
O seu consolo é o do gerúndio que apela à paciência, valida a transição e acompanha o tempo.
Ana Sevinate
Psicóloga clínica e psicoterapeuta
Pós-graduada em psicossíntese e em cuidados paliativos. Membro do grupo de trabalho Ecopsicologia Portugal e co-fundadora do projeto Histórias de Raiz. Formadora no curso de doulas de fim da vida.
Autora do livro Ser Terra: o abraço da Psicologia à natureza, publicado pela Chiado. Tecida por histórias, danças nas pontas dos pés, cores, papoilas aos molhos e folhas de tília.
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