artigo de Maria Trincão Maia

Hoje Vi uma Doninha

3 MIN DE LEITURA | Revista 44

Da minha janela, virada para o cabeço, elevação que existe atrás da minha casa, cheia de plantas silvestres, oliveiras, olaias, um cedro realmente torto de seu nome Óscar e animais selvagens. Hoje desta janela virada para o cabeço, avistei uma doninha. O gato Tristão, deitado no solo, olhava intrigado, sem se mexer e sem ter medo. Compreendiam-se na sua condição mamífera de quatro patas. Um suficientemente amestrado para ter um nome, um prato de comida, uma cama, festas quando deixa e um bom dia, o outro no percurso do seu caminho fora avistado pela primeira vez.

Existência de animais selvagens no cabeço é conhecida. A história da galinha depenada e envergonhada, que perdera a compostura devido a uma doninha. Ficando para sempre numa espécie de existência pouco convicta que estaria segura. As cobras que passam, que em criança apanhávamos e que às vezes ainda passam tão perto de nós. Lembro-me de há meia dúzia de anos uma ter chegado a passar por cima dos meus pés. Um susto, um suspiro de compreensão em que depois o coração desacelera e reconhece o outro. E a emoção sempre que encontro uma pele de cobra, como um significado de uma simbiose que acontece entre essa cobra e a minha existência.

“Descamamos de novo irmã, temos uma nova pele.”

Num existir para além dos limites do meu corpo e da casa. Em que o corpo se estende pelo chão, pelas árvores, pelos animais. O meu e o deles. Numa união não tão ouvida, não tão sabida.

Depois existem os coelhos, esses mais audazes e acostumados, aparecem várias vezes, pequenos e grandes, saltam entre ervas, descansam ao sol, abrigam-se da chuva. Agradecemos que os nossos gatos apenas sejam caçadores de comida no prato e vejam os coelhos como outros companheiros de casa. Não os caçam, não os perseguem. No máximo observam-nos curiosos, como todos os gatos são. Não podemos esquecer os ratos, porque existem, grandes, pequenos, faroleiros e ratazanas, sempre longe da casa, mas podemos ouvi-los, vê-los passar rápido por entre os troncos de lenha armazenada nos anexos. Os gatos, fazem a sua função estereotipada pelas histórias infantis, e para nosso descanso os nossos Toms são mais eficazes que os nossos Jerrys.

Os pássaros todos que cantam, todos os dias. Existe uma música ambiente constante, o cantar deles quase preenchem tudo como se estivéssemos numa floresta densa. Se fecharmos os olhos, sentimos as paredes a dar lugar a árvores, arbustos e plantas, os tacos de madeira são terra. E nós deixamos de ter tanto medo. Ouvimos pássaros e cigarras… e chegamos a casa.

Mas, no cabeço, as árvores mais altas dão abrigo e casa a uma grande familia de gralhas, que toda a gente confunde com corvos. As nossas gralhas, ou somos nós das gralhas, ou somos umas grandes gralhas, habitam desde que me lembro num conjunto de cedros. Podemos vê-las no seu dia a dia, com os seus afazeres. Passamos muito tempo a olhar para esses cedros e quando não as vimos perguntamos por elas. Fazem para do nosso horizonte, da nossa paisagem. Nesse mesmo lugar das árvores, por baixo, junto ao tanque agora vazio, mas que outrora servia para regar as plantações, existe uma toca de raposa. Essa toca era um lugar místico, como se fosse, se tivesse um véu que separa dois mundos. Não acessível, mas visível. Lembro-me de ser pequena, e este espaço era proibido, só se podia ir lá com adultos. Então estávamos sujeitas às vontades e aos tempos dos adultos. Lembro-me sempre daquela toca de raposa e do meu avô dizer que antigamente havia ali raposas, mas que tinham desaparecido. Tinham ido embora. Foi com espanto e alegria que muitos anos depois, da janela virada para o cabeço, já o meu avô e avó tinham morrido, avistámos uma raposa. E celebrámos: tinham voltado!

Observo pelas janelas o que existe fora de portas, não num papel de voyeur, mas como uma participadora activa neste ecossistema. Hoje, a doninha não apareceria se a minha presença fosse exterior, e eu não a poderia reconhecer. Existe um poder quase esquecido em apenas observar, não agir. Esperar pelo que existe para além de nós. Estes seres não humanos que partilham o mesmo espaço que eu chamo casa e que partilhamos o que somos uns com os outros. Eu só sei de parte deles, eles sabem todos de mim. Não porque eu sou especial. Mas porque me esqueci, como todos nos esquecemos, que somos não só os humanos como os não os humanos.

Hoje eu vi uma doninha, e foi um dos momentos mais especiais dos últimos tempos. Porque reencontrei uma velha amiga que nunca tinha conhecido.

Nesse mesmo lugar das árvores, por baixo, junto ao tanque agora vazio, mas que outrora servia para regar as plantações, existe uma toca de raposa. Essa toca era um lugar místico, como se fosse, se tivesse um véu que separa dois mundos.

Maria Trincão Maia

Maria Trincão Maia

Editora da Revista

Pessoa, às vezes. À procura de alguma coisa que não sabe o que é. Caminhante por margens, que às vezes anda de carro ou bicicleta elétrica. Uma espécie de estudante e uma estudante de espécie. Designer mas não sabe de que... ainda. Porém, quase preferencialmente: uma metamorfose ambulante.

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