Ecoespiritualidade

Coluna de Jorge Moreira

10 MIN DE LEITURA | Revista 44

A Consciência Eco-Espiritual

Na Missão de Jane Goodall

Parte II

 

Claramente, naquele tempo [em criança], estava a começar a sentir-me parte de algum tipo de grande poder unificador. Certas coisas causavam sentimentos de felicidade tão profundos que as lágrimas me vinham aos olhos — “e em meu coração a dor de alegria que isso poderia dar”. Eu nunca sabia quando tais emoções seriam desencadeadas: um pôr do sol especialmente lindo; de pé sob as árvores quando o sol de repente surgia por trás de uma nuvem e um pássaro cantava; sentado no silêncio absoluto de alguma catedral antiga. Em momentos como esses, senti fortemente que estava dentro de algum grande poder espiritual – Deus. E à medida que avançava na vida, vinha a aprender gradualmente como procurar força nesse Poder, essa fonte de toda energia, para fortalecer o meu espírito abatido ou o meu corpo exausto em momentos de necessidade[1].

Jane Goodall

 

Contato com a Natureza

Quando era menino passava horas a fio fascinado pelo mundo natural. O monte, os bosques e os riachos eram os meus lugares de comunhão e brincadeira. Saltitava entre flores silvestres e subia às árvores. Deparava-me com a magia dos ninhos e o coaxar das rãs. Que saudades desses tempos e espaços onde a vida era mais cheia de vida e a cor mais cristalina! Oh, e o silêncio? Como era majestosamente perfumado pelo canto das aves ou pela melodia do vento a suspirar entre as folhas dos choupos, pinheiros e carvalhos! Inesquecível! Tal como aquele navegar quase etéreo entre pedras húmidas e verdes que fluía ao encontro do rio animado de peixes.

É verdade que muitos de nós vivíamos numa altura em que as brincadeiras aconteciam no exterior, nos espaços verdes, ainda um pouco livres das tecnologias que viciam. Outros tempos em que o contato com a Natureza era uma fonte de alegria, saber, admiração e brincadeira. Talvez o cenário de Jane Goodall não tenha sido muito diferente e menos profundo de admiração, já que ela também e desde muito cedo desenvolveu uma sensibilidade bastante peculiar com o mundo natural:

Em criança, sempre tive uma conexão profunda com as árvores, trepando especialmente uma no meu jardim, perto do céu, dos pássaros e do vento[2].

 

Como a maioria das crianças antes da era da TV e dos jogos de computador, eu adorava estar ao ar livre, a brincar nos lugares secretos do jardim, aprendendo sobre a natureza. O meu amor pelas coisas vivas foi encorajado, de modo que, desde o início, fui capaz de desenvolver esse sentimento de admiração, de reverência, que pode levar à consciência espiritual[3].

 

O sentimento profundo em Goodall que emerge do contato que ela teve com a Natureza desde criança foi fundamental para despoletar uma consciência eco-espiritual muito cedo. Esse sentimento é algo inefável que surge dentro de nós quando nos encontramos em comunhão com o mundo natural e que nos preenche de forma arrebatadora, dando sentido à existência sem o percebemos bem de forma racional. Talvez seja do reencontro mais íntimo, sagrado, entre as nossas Naturezas, a singularidade da qual somos e a totalidade da qual também somos. Quanto mais pura, bela e selvagem a Natureza se encontrar e quanto mais sensíveis e abertos nos encontramos, mais provável e mais forte é sentirmos essa inefabilidade. Quando a sentimos, um laço sagrado profundo se abre entre nós e a Natureza, que dá origem a essa consciência eco-espiritual.  Quando Goodall visitou pela primeira vez uma floresta pristina na África Central, ela confidenciou que foi uma experiência espiritual[4]. Diz Goodall:

(…) aqueles meses no Gombe ajudaram a moldar a pessoa que sou hoje – eu teria sido realmente insensível se a maravilha e o fascínio infinito do meu novo mundo não tivessem um grande impacto no meu pensamento. Eu estava o tempo todo a aproximar-me dos animais e da natureza e, como resultado, encontrava-me mais perto de mim e cada vez mais sintonizada com o poder espiritual que sentia ao meu redor. Para aqueles que experimentaram a alegria de estar a sós com a natureza, há realmente pouca necessidade de dizer muito mais; para aqueles que não estiveram, nenhuma palavra minha pode descrever o conhecimento poderoso, quase místico, da beleza e da eternidade que vem, de repente e totalmente inesperada[5].

 

Estas palavras refletem a importância do contato com a Natureza, que por um lado é um meio propício para nos conectarmos connosco próprios – com a nossa natureza multidimensional; por outro, para despertar para essa realidade subtil que sustenta a vida, que Goodall define como [o Grande] Poder Espiritual.

 

A Dimensão Divina da Natureza

Para Goodall a Natureza é ao mesmo tempo obra divina e o divino em si mesmo. A primeira forma é bem explicita no prefácio do livro The Intelligence of the Cosmos de Ervin László, onde Goodall escreveu: «devemos aceitar que existe uma Inteligência a impulsionar o processo [da evolução], que o universo e a vida na Terra são inspirados e in-formados por um Criador desconhecido e incognoscível, um Ser Supremo, um Grande Poder Espiritual[6]». Neste trecho Goodall dá a entender a existência de um Grande Arquiteto do Universo e da Vida, com o seu Princípio Orientador, que ela inicialmente identificava como o Deus cristão, mas à medida que foi conhecendo outras religiões percebeu que Ele era o mesmo com outras designações: Alá, Tao, o Criador e assim por diante. Talvez por isso ela passou a referir-se a esse Ser Supremo como o Grande Poder Espiritual, já que esta designação trespassa a identidade peculiar de cada religião e dá-lhe uma dimensão mais ampla e espiritual. De qualquer forma, a Natureza é nesta perspetiva vista como a Obra do Criador.

Na segunda forma, a Natureza como a divindade em si mesma, também tem duas leituras complementares. A primeira olha para tudo o que existe (e não existe) no universo como Deus: «Deus, para mim, era o Grande Espírito em quem vivemos, nos movemos e existimos[7]». Esta visão é interessante, já que retrata as duas faces da moeda – matéria e espírito, que formam uma unidade indivisível. O entrelaçamento destas duas faces resulta na manifestação e evolução da vida. Ao seu nível, podemos dizer que Gaia, a Terra animada, é como uma deusa, já que é nela que “vivemos, nos movemos e existimos”. Por sua vez, o Sistema Solar, a Galáxia ou o Universo em si mesmos são também Logos nos seus diversos níveis de existência. Por fim, podemos falar de um derradeiro nível de um Absoluto Último Incognoscível, donde tudo provém, é e será.

A segunda leitura é um eco da primeira, aquilo que normalmente se designa por animismo. Diz Goodall a propósito:

Quanto mais tempo eu passava sozinha, mais me unia com o mundo mágico da floresta que agora era o meu lar. Objetos inanimados desenvolveram as suas próprias identidades e, como o meu santo favorito, Francisco de Assis, eu nomeei-os e cumprimentei-os como amigos. “Bom dia, Cume”, dizia eu ao chegar lá todas as manhãs; “Olá, Riacho” quando colhia a minha água; “Oh, Vento, pelo amor de Deus, acalme-se” enquanto uivava acima, arruinando a minha chance de localizar os chimpanzés. Em particular, tornei-me intensamente consciente do ser das árvores[8].

 

(…) uma vez, quando estava sozinha na floresta, de repente pensei que talvez houvesse uma centelha desse poder espiritual em toda a vida. Nós, humanos, com a nossa paixão por definir as coisas, chamamos essa centelha em nós mesmos de nossa alma, espírito ou psique. Mas enquanto eu estava lá sentada, abraçada por toda a maravilha da floresta, parecia que aquela centelha animava tudo, desde as borboletas que esvoaçavam até as árvores gigantes com as suas guirlandas de trepadeiras[9].

 

Goodall reflexe que a mesma natureza divina que nos anima é igual à mesma natureza que anima todas as outras espécies. Há aqui um universal – mesma natureza; e um particular – cada espécie tem essa centelha divina que a anima.

Estas duas formas de ver a Natureza como divindade em si mesma é também uma perspetiva teosófica de olhar para o universo – a multiplicidade na unidade. Um Incognoscível que faz surgir um Logos, que por sua vez se fez Manifestar em espírito e matéria, com as Monadas (Centelhas, Partículas do Logos) a passarem por um processo de evolução através da matéria, da forma e da espécie. Neste sentido, toda a vida é um pulsar divino e a diferença entre um conjunto de árvores, mamíferos não-humanos ou os humanos, não é significativo, só difere no estado evolutivo. Em última instância tudo é Um. O cuidado e o respeito pela Natureza na sua multiplicidade de formas e consciências é algo natural, para quem partilha desta visão. Goodall percebeu-o intuitivamente, embora o seu contato com a Teosofia pudesse ter ajudado a compreender melhor esta realidade.

 

O Insight Místico

A perceção de Goodall de que existe uma realidade mais subtil não surge por acaso. Ela apresenta uma série de experiências que teve, com equivalência nos relatos de poetas e místicos de todos os tempos e culturas, conhecido pelo insight místico – algo que surge em nós como um flash, onde a realidade é espacial, dimensional e temporalmente aumentada, com a informação e/ou comunicação a surgir de fontes normalmente vedadas aos sentidos comuns ou com os sentidos a rasgaram os seus limites, deixando entrar toda a informação. Geralmente, estes eventos manifestam-se como episódios isolados e inesperados, que surgem perante um estado de sensibilidade apurada, um coração puro, um local peculiar ou um cenário de beleza arrebatadora. É uma experiência direta com a fonte, sentida profundamente no seu íntimo, difícil de descrever e muito menos de provar aos outros. Algumas vezes é apresentada como estados alterados de consciência.

Parece-me que a beleza é um catalisador capaz de despoletar este tipo de fenómeno em Goodall:

A beleza esteve sempre presente, mas os momentos de verdadeira consciência eram raros. Eles vinham sem avisar; talvez quando eu estava a observar o rubor pálido precedendo o amanhecer ou a olhar através das folhas que sussurravam de alguma árvore gigante da floresta, entre os verdes, os castanhos, as sombras negras e a mancha brilhante, ocasionalmente enredada de céu azul; ou quando parava, enquanto a escuridão caía, com uma mão no tronco ainda quente de uma árvore e olhava para o brilho da lua nascente nas águas nunca paradas e suavemente suspiradas do Lago Tanganica[10].

Por sua vez, a eco-espiritualidade em Goodall é reforçada pelos seus lampejos místicos, já que algumas das experiências em estados alterados de consciência levam-na a sentir-se una com toda a vida envolvente. Por exemplo:

Ouvi sons de saudação quando Fifi (Chimpanzé) e sua família se juntaram a Melissa (Chimpanzé) e à família desta. Todos subiram a uma árvore baixa para se alimentar de folhas novas e frescas. Mudei-me para um lugar onde pudesse ficar de pé e observar enquanto eles desfrutavam da sua última refeição do dia. Lá em baixo, o lago ainda estava escuro e furioso, com manchas brancas onde as ondas rebentavam, e as nuvens de chuva permaneciam negras a sul. A norte, o céu estava claro, com apenas fiapos de nuvens cinzentas ainda a pairar. O cenário era de tirar a respiração pela sua beleza. Sob a luz suave do sol, os pelos pretos dos chimpanzés eram salpicados de castanho acobreado, os galhos onde estavam sentados encontravam-se húmidos e escuros como ébano, as folhas jovens eram de um verde-pálido, mas brilhante. E atrás disto tudo se encontrava o dramático pano de fundo, de um céu índigo, onde relâmpagos tremeluziam e trovões distantes roncavam e ressuavam.

Perdida em admiração pela beleza ao meu redor, devo ter entrado num estado de consciência aumentada. É difícil – impossível, realmente – colocar em palavras o momento da verdade que de repente veio até mim na altura. Mesmo os místicos são incapazes de descrever seus breves lampejos de êxtase espiritual. Parecia-me, enquanto lutava para recordar a experiência, que o eu estava totalmente ausente: eu e os chimpanzés, a terra, as árvores e o ar, parecíamos nos fundir, para nos tornarmos um com o poder espiritual da própria vida. O ar estava cheio de uma sinfonia emplumada, o canto uniforme dos pássaros. Ouvi novas frequências nas suas músicas e também nas vozes dos insetos cantores — notas tão altas e doces que fiquei maravilhada. Nunca tinha estado tão intensamente consciente da forma, da cor das folhas individuais, dos variados padrões das nervuras que tornavam cada uma única. Os aromas também eram claros, facilmente identificáveis: fermentação, frutas muito maduras; terra alagada; casca fria e húmida; o cheiro molhado do pelo de chimpanzé e, sim, do meu cabelo também. E o cheiro aromático das folhas jovens esmagadas era quase insuportável. Senti uma nova presença, então vi um antílope, navegando silenciosamente contra o vento, seus chifres em espiral e a sua pelugem castanho-escura brilhavam com a chuva.

De repente, um coro distante de pant-hoots (vocalização complexa dos chimpanzés) provocou uma resposta da Fifi. Como se acordasse de um sonho vívido, eu estava de volta ao mundo quotidiano, frio, mas intensamente vivo. Quando os chimpanzés partiram, fiquei naquele lugar – parecia um lugar muito sagrado – a rabiscar algumas notas, tentando descrever o que, tão brevemente, havia vivenciado. Eu não tinha tido uma visita dos anjos ou de outros seres celestiais que caracterizam as visões dos grandes místicos ou dos santos, mas, apesar de tudo, acredito que foi realmente uma experiência mística[11].

Para a Teosofia, não há matéria morta. Contudo, é preciso perceber que a vida aqui entendida não é um conceito científico, mas o entrelaçamento entre a matéria e o espírito. A inclusão dos elementos abióticos na experiência de Goodall vem demonstrar que mesmo a terra, a água ou as rochas têm vida latente em evolução, partilhando o mesmo “poder espiritual da própria vida”.

 

A Ecologia Espiritual

As experiências místicas e de comunhão que Jane Goodall teve no seio do mundo natural levaram-na a perceber que a um nível mais profundo nós somos da mesma essência que a Natureza e os seus elementos. Isso levou-a à eco-espiritualidade. A destruição que o nosso modo de vida impõe ao mundo natural levou-a a tomar iniciativas de defesa desse (nosso) mundo. A fundamentação ética tem muito em comum com a ecologia espiritual. É ecocêntrica, integra preocupações com os outros seres, os elementos abióticos e os ecossistemas e inclui a dimensão sagrada da vida e a evolução espiritual da Humanidade. A propósito, diz-nos Goodall:

A evolução moral, penso eu, é entender como nos devemos comportar, como devemos tratar os outros, entender a justiça, entender a necessidade de uma sociedade mais igualitária. A evolução espiritual é mais sobre meditar no mistério da criação e do Criador, perguntar quem somos e por que estamos aqui e entender como fazemos parte do incrível mundo natural – novamente, Shakespeare diz isso muito bem, quando fala de ver ‘livros no mundo dos riachos a correr, sermões nas pedras e o bom em tudo’. Tenho a noção de tudo isto quando fico paralisada, cheia de maravilha e admiração por algum pôr do sol glorioso, ou o sol a brilhar através da cobertura da floresta enquanto um pássaro canta, ou quando me deito de costas nalgum lugar tranquilo e olho para cima, e para cima, e para cima até ao céu, enquanto as estrelas emergem gradualmente do desvanecimento da luz do dia[12].

(Continua)

 

Referências Bibliográficas

Goodall, J., Abrams, D., & Hudson, G. (2021). The Book of Hope – A Survival Guide for Trying Times. Celadon Books.

Goodall, J., & Berman, P. (1999). Reason for Hope – A Spiritual Journey. Warner Books.

Laszlo, E. (2017). The Intelligence of the Cosmos: Why Are We Here – New Answers from the Frontiers of Science. Inner Traditions.

 

[1] (Goodall & Berman, 1999, Chapter 2)

[2] (Jane Goodall apud Taylor, 2010, p.28)

[3] (Goodall & Berman, 1999, Capítulo 1)

[4] (Jane Goodall apud Taylor, 2010, p.28)

[5] (Goodall & Berman, 1999, Chapter 5)

[6] (Laszlo, 2017, Chapter Foreword)

[7] (Goodall & Berman, 1999, introdução)

[8] (Goodall & Berman, 1999, Chapter 5)

[9] (Goodall et al., 2021, Chapter Reason 4: The Indomitable Human Spirit)

[10] (Goodall & Berman, 1999, Chapter 5)

[11] (Goodall & Berman, 1999, Chapter 12)

[12] (Goodall et al., 2021, Chapter Spiritual Evolution)

“”Em criança, sempre tive uma conexão profunda com as árvores, trepando especialmente uma no meu jardim, perto do céu, dos pássaros e do vento[2].

 

Como a maioria das crianças antes da era da TV e dos jogos de computador, eu adorava estar ao ar livre, a brincar nos lugares secretos do jardim, aprendendo sobre a natureza. O meu amor pelas coisas vivas foi encorajado, de modo que, desde o início, fui capaz de desenvolver esse sentimento de admiração, de reverência, que pode levar à consciência espiritual[3].

Jorge Moreira

Jorge Moreira

Ambientalista e Investigador

Licenciado em Ciências do Ambiente, Minor em Conservação do Património Natural, mestre em Cidadania Ambiental e Participação, pela Universidade Aberta, e Doutorando em Sociologia pela Universidade de Coimbra. É bolseiro FCT e investigador do Centre for Functional Ecology, Science for People & the Planet da Universidade de Coimbra.
É vice-presidente da FAPAS - Associação Ambientalista para a Conservação da Biodiversidade; dirigente da Sociedade de Ética Ambiental, dos movimentos cívicos Alvorecer Florestal e Aliança pela Floresta Autóctone.
É autor de vários artigos dedicados ao ambiente e voluntário em inúmeras ações de defesa, conservação, promoção e recuperação do património natural.
Tem desenvolvido investigação nas áreas da Ética Ambiental, Educação Ambiental, Sustentabilidade, Alterações Climáticas, Ecologia Profunda e Ecologia Espiritual, onde tem realizado conferências e promovido os temas.

shakti@sapo.pt