artigo de sofia batalha
Transgredir e escolher o lado errado da encruzilhada
4 MIN DE LEITURA | Revista 42
Excerto do próximo livro
O Santuário – Ensaios sobre Eco-Mitologia
Este é, portanto, um livro aquático e em rede, uma malha entre-cruzada pulsante e viva, uma publicação laborada em teia, como se várias aranhas tecessem múltiplos fios entrelaçados, numa trama tão potente como frágil. Estas palavras-território não são um recurso linear sobre o tema da Eco-Mitologia, de listas ou definições finais, mas uma jornada paradoxal em territórios exilados e esquecidos, pois só um livro vivo pode dialogar com as várias camadas, paradigmas e percepções que abrem espaço à sabedoria eco-sistémica e mitológica. Este é um apelo ao mamífero em nós.
Este nunca seria um livro de soluções ou conclusões binárias, mas uma peregrinação ao que ocultamente nos mantém imaturos e encarcerados numa visão cultural cartesiana e extremamente limitada.
Escrevo-o em cumplicidade e intimidade com a paisagem e lugar onde me encontro, um território limítrofe onde a Terra acaba e a Água começa, aqui na costa mais ocidental do continente eurasiático, virada para o Oceano Atlântico, na Península Ibérica. Este lugar é poroso à força das Águas salgadas, aqui onde as pedras se derramam sobre as marés e profundidades atlânticas. Há também um murmurejar constante entre as Águas selvagens deste oceano e o delta do rio Tejo, além de outros riachos de Água doce.
Desde pequena que me encontro nestas cristas costeiras, respirando ar salgado e húmido, ouvindo o rugir das vagas e dos ventos. Este é um lugar periférico e de transição. Aqui, a Água está em todo o lado e sob muitas formas, pois o habitat oceânico não termina onde as ondas se quebram ou à beira do precipício rochoso. O sistema aquático é altamente dinâmico e transversal, penetra e agita-se, flui e muda constantemente, entrelaçando o ar e os odores da costa, o rugido da expansão e contracção das marés, as nuvens e ventos rodopiantes e o vasto horizonte oceânico, com a linha onde a Água e o céu se fundem.
Este é um território de palavras para recordar o paradoxo de sermos Água e Terra.
Aqui nas arribas à beira do mar somos recordados de sermos recipientes de Água orgânicos e mamíferos, e que esta profunda relação e antigo entendimento ainda vivem no nosso corpo desde a concepção até à Morte, em líquido amniótico, sangue, saliva, lágrimas, suor e todos os fluidos corporais. A percepção eco-mitológica mexe-se como as Águas, as internas e externas, flui em paradoxo e remembramento. Para que a reparação da moderna percepção fragmentada aconteça pedimos ajuda a algumas entidades primevas, tais como as Sereias, as Comadres e as Sibilas, todas sacerdotisas oraculares que nos comunicam pelas sensações, emoções, imaginação, intuição e instinto.
Aqui nos precipícios de gigantescas rochas que conversam com as ondas, as correntes e os ventos, tomamos contacto com o que não sabemos e dissolvemos crenças de quem achamos que somos.
Este é um convite a corajosamente peregrinarmos aos lugares escuros e invisíveis da mente moderna, o que evitam que o diálogo da Vida se regenere. Este conceito de modernidade — um mono-mito ocidental linear, a-histórico, científico, capitalista e de excepcionalismo moral — segue as linhas de autores que trabalham não do ponto de vista binário ou polarizado, mas paradoxal, criticando as restritas e violentas lentes desta visão cultural.
Apesar das letras impressas a negro sobre cada página, cada palavra abre e fecha portas, cada vírgula salta e rebola. Ao aventurar-nos a ler e reler estas páginas em diferentes alturas do dia, do ano ou da Vida, tocaremos em diferentes texturas, com variadas interpretações e passagens.
As frases podem aparentar ser estáticas, mas contêm Vida, transformam-se e desdobram-se de cada vez que as lemos. Então, sim, este é um livro vivo e pode ser lido como um animal selvagem, um fruto doce e sumarento ou como o fundo do oceano.
Convido quem o leia a manter espaço aberto para que se possam metamorfosear em conjunto, as letras e as crenças, as páginas e o corpo, na Água, na cinza ou no sal. Porque ler não é um acto passivo, mas uma participação activa, um diálogo profundo entre o que levamos dentro e o que está fora. Mas principalmente nos lugares de fronteira, o fora-dentro e o dentro-fora, assim como o antigo-novo-antigo — membranas semi-permeáveis de identidade, diálogo e relação, onde assumimos que nem tudo é dentro e nem tudo é fora, percepcionando os espaços paradoxais, periféricos e intersticiais.
Este é um convite para que a mente racional não cale as profundezas da Alma. Precisamos de compromisso, dignidade e coragem para o aceitar, especialmente quando a razão se mete no caminho do que acredita estar certo ou que deve ser feito. É necessário escolher o lado “errado” da encruzilhada, transgredir e ir no sentido oposto, pois de outra forma não encontramos o fio, a memória ou a melodia da Alma Ecológica ou da Psique Mítica.
Trazemos aqui o ritual e o mistério do que não sabemos. Envergamos os limiares do negro e do subterrâneo, da relação visceral e ancestral com a escuridão. Aqui, no escuro, é onde as coisas sem forma e não vistas residem, onde as sementes germinam, no crepúsculo e nas sombras. Rodeada de denso negrume, é onde a integrada sabedoria sensorial acorda.
Acontece que desde à cerca de trezentos anos colonizamos a noite através da iluminação eléctrica, banindo as sombras, silenciando a ambiguidade e o fascínio por outras formas de ser mundo. Deixamos de ver as estrelas encadeados pela nossa própria luz, endeusamos a tecnologia e os resultados rápidos. Ao excluir a obscuridade das nossas paisagens internas e externas esquecemos parte de quem somos. Queremos ver tudo, mas nem tudo se presta à visão. Aqui caminhamos intencionalmente às escuras, pelo tacto, pelo som, pela temperatura e pela intuição. Reclamamos lugares esquecidos de sentir.
Para citar este artigo:
BATALHA, Sofia. Transgredir e escolher o lado errado da encruzilhada. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-42/transgredir-e-escolher-o-lado-errado-da-encruzilhada/, número 42, 2023
Este é um convite para que a mente racional não cale as profundezas da Alma. Precisamos de compromisso, dignidade e coragem para o aceitar, especialmente quando a razão se mete no caminho do que acredita estar certo ou que deve ser feito. É necessário escolher o lado “errado” da encruzilhada, transgredir e ir no sentido oposto, pois de outra forma não encontramos o fio, a memória ou a melodia da Alma Ecológica ou da Psique Mítica.
Sofia Batalha
Fundadora e Editora da Revista
Mamífera, autora, mulher-mãe, tecelã de perguntas e desmanteladora o capitalismo-global-colonial-tecnológico um dia de cada vez. Desajeitada poetiza de prosas, sem conhecimentos gramaticais. Peregrina pelas paisagens interiores e exteriores, recordando práticas antigas terrestres, em presença radical, escuta activa, ecopsicologia, arte, êxtase, e escrita.
Honor hystera. Re-member. Response-ability. (un)Learn together.
Autora de nove livros e editora da revista online Vento e Água, Comadre conversadeira no podcast Re-membrar os Ossos e em Conversas D'Além Mar. Instagram, Serpentedalua.com, Sofiabatalha.com
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