Ecoespiritualidade

Coluna de Jorge Moreira

7 MIN DE LEITURA | Revista 40

Irmã Bétula, Irmão Abeto

 

«Sinto que estamos agora num ponto crítico, porque nos afastamos da Natureza e estamos a ver o enorme declínio; e temos de fazer alguma coisa. Acho que o ponto crucial é que temos novamente de nos envolver no nosso mundo natural. Somos todos um, juntos, nesta biosfera, e precisamos de trabalhar com os nossos irmãos e irmãs, as árvores, as plantas, os lobos, os ursos e os peixes. Uma maneira de alcançar esse objetivo é começar a ver a floresta de uma forma diferente: portanto, [perceber que] sim, a Irmã Bétula é importante e o Irmão Abeto é tão importante quanto a sua família» (Suzanne Simard, 2022).

O solstício de inverno traz-me uma Natureza mágica. A palete de cores outonais desvanece-se para dar lugar à pureza do branco, ora em cristais germinados nas ervas, ora em flocos que caiem docemente sobre os telhados. As folhas das caducifólias bailam em direção ao chão, fertilizando-o, e as árvores vestem-se de muitas tonalidades de verde. São líquenes suspensos, algumas vezes maquilhados de roxo, carmesim ou rosa. Mas que belo casamento entre dois seres tão distintos! Afinal, o líquen é um ser complexo, que sobressai da união entre uma alga e um fungo, que vivem em perfeita simbiose. Quem diria, que na diversidade e na diferença há amor e complementaridade! Esta época leva-me ainda para junto do pinheiro, do cheiro da resina, das pinhas e pinhões, mas também do musgo alcatifado nas pedras e solos. Oooh, e o azevinho e as gilbardeiras… ambas com as suas bagas de fogo que alimentam o canto das aves? E a lontra divertida que folga no rio, o coelho que saltita entre tocas e o esquilo inquietamente empoleirado nas árvores? Esta é uma época de família, e esta é também a minha família, o meu presépio. O Natal representa o nascimento da sabedoria, compaixão e humildade no humano. O solstício de inverno, o renascimento da luz, já que marca a passagem das trevas, que começam a definhar em relação ao Sol. Em ambos os casos é a Luz que se celebra, a Estrela de Belém, que regenera o humano, e o Sol, que realenta a Natureza.

Os ciclos da Natureza estão sempre presentes nesse alento eterno que emana do Absoluto. E neste mundo maravilhoso que reside num bosque biodiverso, há vida e beleza, e a vida é inteligente, comunica, aprende e evolui. Uma das descobertas mais fabulosas da contemporaneidade teve como Suzanne Simard a sua percursora. Ela conseguiu explicar cientificamente o que muitos humanos já tinham pressentido na floresta – uma sociedade interconectada e cooperativa. Ann Druyan, na sequela da obra ‘Cosmos’ de Carl Sagan, sobre a ânsia humana pela procura de vida extraterrestre (inteligente), escreve:

«Há uma outra forma de inteligência muito mais próxima de nós. Só há pouco tempo soubemos que existia. É de uma complexidade que está para lá da nossa imaginação mais delirante e foi construída por uma comunidade com uma população inconcebivelmente vasta. Ali os raios de sol são filtrados pelas copas das bétulas, dos áceres, das nogueiras, dos abetos, dos pinheiros, dos carvalhos e dos choupos e o rico tapete de musgo e ramos estala debaixo dos nossos pés. (…) Uma Rede global subterrânea, antiga, uma vasta rede neuronal que une toda a floresta, tornando-a um organismo dinâmico, interativo, que comunica, atua e tem o poder de influenciar o que acontece acima do solo. (…) Uma rede oculta (…), através dela trocam-se alimentos, mensagens, mostra-se empatia entre espécimes e espécies, e mesmo entre diferentes reinos da vida (Druyan, 2020, pp. 216–218)».

Suzanne Simard sempre esteve ligada à floresta. Cresceu numa família de madeireiros, que exploravam florestas antigas de forma sustentável e cuidada. Tornou-se a primeira silvicultora graduada no Canadá e entrou nos serviços florestais estatais. Desde a sua formação académica percebeu que muitas das práticas deste ofício se encontravam em colisão com a sua intuição. A universidade tinha desmantelado a floresta, reduzindo-a e separando-a em árvores, solo e plantas. Os silvicultores reproduziam o modelo cartesiano. Mas ela tinha crescido a sentir a floresta como uma unidade, onde tudo estava entrelaçado e as árvores interdependentes (S. Simard, 2021). Então, começou a investigar mais profundamente, utilizando o método científico, e descobriu que a bétula e o abeto estavam conectados no solo e partilhavam recursos através da rede de fungos micorrízicos. Os resultados desta pesquisa foram publicados em 1997, na revista Nature, onde surge pela primeira vez a referência à Wood-Wide Web (S. W. Simard et al., 1997), que orignou uma onda de interesse em todo o mundo, mas também muitas críticas de investigadores cristalizados nas suas velhas ideias.

Face à inércia dos serviços florestais estatais em adotar estes conhecimentos na gestão das suas florestas e ao incómodo que as estas descobertas estavam a causar no seu seio, Simard abandona a sivicultura e inicia uma nova fase da sua vida na academia. Neste meio abraçou a ecologia florestal, passou a desenvolver a sua linha de investigação e a orientar alguns investigadores. Um dos seus alunos, Kevin Beiler, conseguiu mapear uma rede inteira numa floresta, donde emergiu um mapa em que se destacavam alguns hubs, pela quantidade de conexões. Eram grandes e velhas árvores, que se encontravam ligadas com quase todo o resto. Os seus brotos, que entretanto germinavam, conectavam-se rapidamente à rede para receber carbono, nutrientes e água das árvores velhas, já que ainda não tinham capacidade para o fazer. Investigações posteriores levaram ainda a perceber que estas árvores antigas conseguiam reconhecer os seus parentes, fornecendo-lhes mais recursos, para salvaguardar o seu património genético. Foi aqui que a equipa de Suzanne percebeu que estas árvores desempenhavam o papel de mães e começaram a chamá-las de Árvores-Mãe.

De forma complementar, Simard ao estudar as histórias antigas dos povos indígenas descobriu que estas comunidades já se referiam a estas árvores da mesma forma, como Árvores-Mãe, Árvores-Avó e até Árvores-Avô. Percebeu que as conexões que descobriu já eram conhecidas pelos povos primevos. Estes sabiam sobre o fungo no solo, como as árvores eram alimentadas, como o salmão entrava na nutrição delas e colocavam os restos e os ossos do salmão sob as árvores ou nos riachos para fertilizá-las. O Conhecimento Ecológico Tradicional é uma sabedoria holística e sistémica com milhares de anos, alicerçada na experiência e na observação dos sistemas naturais, da sua variabilidade, que foi ignorado e até ridicularizado pela arrogância da academia dos colonizadores.

«O nosso povo aborígene vê-se a si próprio em unidade com a Natureza. Eles nem sequer têm uma palavra para “o ambiente”, porque veem as árvores, as plantas e os animais, o mundo natural, como pessoas iguais a si mesmos. Portanto, há o Povo das Árvores, o Povo das Plantas; e eles tinham as Árvores-mãe e Árvores-Avô e o Irmão Morango e a Irmã Cedro. E eles tratavam-nos com respeito, com reverência. Trabalhavam com o ambiente para aumentar a sua própria habitabilidade e riqueza (…) Eram sociedades ricas. (S. Simard, 2022)».

Suzanne Simard tem muita afinidade com esta perspetiva indígena e evoca a família como suporte geracional. Sente que a sua bisavó, avó e mãe vivem nela e preocupa-se com o futuro dos seus filhos. Sobre este assunto ela destaca a responsabilidade dos aborígenes para com as sete gerações anteriores e posteriores, algo de que a nossa sociedade se encontra desconetada e deveria aprender. Vivemos num modelo social em que os velhos são estorvos e descartáveis, e o que fazemos à Natureza e ao Clima não é refletido nas consequências e bem-estar dos nossos filhos, netos, bisnetos e restantes gerações futuras. Mas a família aqui não é só humana. Há os Irmãos e Irmãs de casca, epiderme vegetal, penas, escamas, exoesqueleto quitinoso, membrana ou outra ´pele’. O que estamos a fazer para os proteger?

Quando Suzanne esteve a lutar pela sua vida na sequência de um cancro, ela confessou que a sua espiritualidade cresceu imensamente.  Nesse período difícil deu-se conta que precisava de aprender com as suas descobertas e vice-versa. Pegar na sua experiência pessoal e incorporá-la ao que estava a estudar e percebeu que as árvores moribundas passavam informação para as vizinhas, até de espécies diferentes, e o quão importante isso era para a floresta e o seu futuro.  Levou essa descoberta para os seus filhos e disse:

«É isso que eu também preciso fazer. Eu sou como a Árvore-Mãe, e mesmo que vá morrer, preciso de dar tudo de mim, assim como estas árvores estão a dar tudo de si» (S. Simard, 2022).

Simard percebeu que o seu trabalho, mesmo com mais de três décadas de investigação científica, não tinha mudado as práticas nas florestas. Aproveitou a força vital inerente à sua missão e após a recuperação e ‘renascimento’, iniciou um ambicioso programa intitulado ‘The Mother Tree Project’, com o objetivo central de identificar o corte sustentável e os tratamentos de regeneração que poderão manter a resiliência da floresta à medida que as alterações climáticas se fazem sentir na British Columbia (The Mother Tree Projec, 2015). Esta é, inequivocamente, uma ponte e um compromisso para as gerações futuras. Nas suas palavras: «queremos que as nossas próximas gerações sejam saudáveis, prósperas e amem suas vidas, tenham vidas felizes, não sofram e enfrentem um futuro sombrio» (S. Simard, 2022). Mas, este também é um compromisso espiritual.

Suzanne Simard fez um círculo completo. Nasceu com uma intuição apurada, que apreendia a floresta de forma holística.

«Eu cresci a brincar naquelas belas florestas antigas e nem mesmo compreendendo intelectualmente o quão conectada eu havia me tornado, porque era apenas o nosso modo de vida. E eu entendia a floresta como um lugar profundamente conectado e reverente. Era como a nossa igreja – essas enormes catedrais de árvores – então, isso foi simplesmente absorvido dentro dos meus ossos, sangue e ADN» (S. Simard, 2022).

Posteriormente, Suzanne enveredou pela academia e pela silvicultura cartesiana, que trabalhava com os elementos desconectados. Mas, a sua inquietação com esta realidade, desfasada da realidade mais profunda que intuía, fê-la trabalhar sabiamente com as metodologias da academia e obteve a compreensão racional da interconexão que desde cedo apreendia. Mais recentemente, acabou por tropeçar no conhecimento indígena, que já transmitia muito do que Simard tinha descoberto pelo método científico, acrescentando a dimensão espiritual na Natureza. E esta dimensão veio colorir a vida e a consciência de Simard:

«Eu fiz um círculo completo para tropeçar em alguns dos ideais indígenas. A diversidade importa, e tudo no universo está conectado, entre as florestas e as pradarias, a terra e a água, o céu e o solo, os espíritos e os vivos, as pessoas e todas as outras criaturas» (S. Simard, 2022).

Suzanne Simard tem uma conexão com a Teia da Vida, com a Wood-Wide Web à sua imagem. E como ela refere, esta conexão não é só física e espacial, mas também geracional, porque estamos conectadas as gerações que nos precederam e temos responsabilidades para com as futuras. Num mundo interconectado, Simard já conseguiu o milagre de quebrar barreiras na academia e do Humano com a Natureza. O Conhecimento Ecológico Tradicional já é considerado em muitos trabalhos científicos e Simard é um excelente exemplo de como conciliar a razão e a intuição. Os estudos que envolvem plantas cresceram imensamente um pouco por todo o lado, fazendo-nos relembrar e entender melhor o seu mundo por nós esquecido. Afinal são nossas parentes.

Falta incorporar esse conhecimento na prática, respeitando as florestas, as Árvores-Mãe, os solos e todos os outros seres que fazem deste mundo um lugar mágico. Seria tão bom que nesta quadra natalícia pudéssemos olhar para a floresta como uma vida bela e inteligente, que merece o nosso cuidado e respeito. Seria ainda melhor que pudéssemos destruir os muros da insensibilidade que nos separam da Natureza e pudesse emergir uma entre nós uma simbiose tão perfeita quanto a do líquen.

Que o Humano desperte para a sua luz interior e seja uníssono com a Luz da Natureza que plasma a Teia da Vida.

Esta é, inequivocamente, uma ponte e um compromisso para as gerações futuras. Nas suas palavras: «queremos que as nossas próximas gerações sejam saudáveis, prósperas e amem suas vidas, tenham vidas felizes, não sofram e enfrentem um futuro sombrio» (S. Simard, 2022). Mas, este também é um compromisso espiritual.

Jorge Moreira

Jorge Moreira

Ambientalista e Investigador

Licenciado em Ciências do Ambiente, Minor em Conservação do Património Natural, mestre em Cidadania Ambiental e Participação, pela Universidade Aberta, e Doutorando em Sociologia pela Universidade de Coimbra. É bolseiro FCT e investigador do Centre for Functional Ecology, Science for People & the Planet da Universidade de Coimbra.
É vice-presidente da FAPAS - Associação Ambientalista para a Conservação da Biodiversidade; dirigente da Sociedade de Ética Ambiental, dos movimentos cívicos Alvorecer Florestal e Aliança pela Floresta Autóctone.
É autor de vários artigos dedicados ao ambiente e voluntário em inúmeras ações de defesa, conservação, promoção e recuperação do património natural.
Tem desenvolvido investigação nas áreas da Ética Ambiental, Educação Ambiental, Sustentabilidade, Alterações Climáticas, Ecologia Profunda e Ecologia Espiritual, onde tem realizado conferências e promovido os temas.

shakti@sapo.pt