artigo de sofia batalha
Fractais
9 MIN DE LEITURA | Revista 40
Abrimo-nos ao ar que nos compõe.
Sentimos a sua textura.
A sua temperatura.
Sentimos a sua presença viva, a sua troca constante.
O ar que nos envolve dentro e fora.
Trazemos a nossa atenção carinhosa a este impulso bem primário.
De expandir e contrair os pulmões, o peito e as costas.
Sentimos como todo o nosso corpo se envolve neste movimento necessário e fundamental de nutrição.
Ganhamos espaço de conexão.
Respirar é este convite ao envolvimento, à reciprocidade e ao diálogo.
Respirar é algo que aquieta a mente e o coração. Sentimos a suavidade de estar.
Sentimos também a meteorologia interna, onde residem os nossos ventos mais intensos, as brisas suaves de primavera, mas também os furacões.
Como os ventos do exterior se conectam aos ventos internos: ao levante, ao suão, ao alísio.
Todos esses ventos que sopram de todas as direções trazendo notícias, mensagens e histórias. Ar quente e ar frio.
Conectamos a força do nosso ar através de cada uma das nossas células.
De quantas respirações é feito um vento…de quantos ventos são feitas as nossas respirações.
Honrando este pulsar de expansão e contração, de abertura e de fecho, em conexão ao eterno e constante movimento de abrir e fechar, sagramos o ar que partilhamos, o ar que saboreamos e cheiramos.
O ar que sentimos, o ar que somos dentro e fora.
Honrando este ar, este vento, este sopro, ligando-nos ao inspiratus ao grande vento da inspiração.
Tal como o vento falamos a partir de agora das ciências não lineares, uma perspetiva tão transcendente como imanente da própria realidade. Então falamos de teoria do caos, da teoria da complexidade e da geometria fractal.
Muitas vezes a geometria fractal é apresentada como um cálculo matemático, mas é muito mais do que isso. É a organização fundamental do cosmos, como se organiza forma de primária.
Desde o nosso corpo que é um fractal, ao cosmos, às plantas, animais, à estrutura da própria terra, a topografia, as galáxias, o universo, às ondas, ao pulsar das marés tudo é fractal. A topografia das montanhas é fractal. Temos esta dimensão altamente poética da geografia fractal, das nuvens e também dos flocos de neve. Aparentemente caótico, mas que tem uma estrutura inerente: tudo tem uma estrutura fractal.
Um fractal é algo que se repete, sempre de forma ligeiramente diferente, orgânica e espontânea. É algo aparentemente desordenado, mas que tem uma ordem, uma sequência, uma estrutura, um padrão inerente. Matrizes ritmicamente reproduzíveis a várias escalas e em várias camadas. Dentro e fora. Macro e micro. Cima e baixo. Tudo está em transformação fractal. A nível microscópico e macroscópico.
A estrutura dos cristais e das gemas é uma estrutura fractal também. Assim como o coração, das trovoadas, dos padrões meteorológicos. Os padrões de vento só conseguem ser explicados pela teoria fractal e teoria do caos. Nada mais consegue explicar os padrões de vento.
É um desafio para a nossa mente racional entender o que é um fractal. Não é nada que possamos compreender totalmente, não é essa a função do fractal.
Quando falamos de fractais falamos de irregularidades. Falamos tanto de transcendência como de imanência. Falamos de transições, lineares ou não, falamos de transformação.
Porque é através da geometria fractal que se explicam muitos dos processos de transição que podemos sentir como crises. Porque somos aculturados a procurar uma estabilidade que não existe. Então sempre que somos empurrados para os limiares da nossa psique, da nossa experiência e vivência, não sabemos o que fazer. Não temos referências de como agir. Porque é sempre misterioso e é sempre novo, uma realidade imanentemente viva e fractal. Não é uma ordem ou planeamento que a nossa mente consiga abarcar, onde consiga sentir-se confortável, porque é altamente dinâmica e desafiante.
Vanessa Andreotti diz que o enredamento não é uma escolha intelectual, não é algo que escolho acreditar, não existe porque o valido intelectualmente. O emaranhamento não é uma escolha intelectual. Ou uma atribuição de vontade. Existe inevitavelmente em todas as dimensões. A própria relação é fractal.
Matriz
As palavras são, de facto, portais vivos de significado e altamente mutável. Estamos habituados a usar a palavra padrão, para revelar uma estrutura recorrente. Algo que se repete no tempo e no espaço. Não necessariamente de forma sempre igual, mas há uma inevitável ideia de regulação de previsibilidade. Padrão vem etimologicamente vem de patter, patrono, pai, relaciona-se com patriarcal. Vem de uma regulação pelo homem da família.
No entanto, também temos o conceito de matriz, que tem sido usado principalmente pela matemática, retirado não só das ciências sociais, mas do corpo e da psique. Usamos padrão para tudo.
Então estou numa demanda para recuperar o termo matriz.
Reparem não é uma substituição, não é para apagar o padrão, mas é para tornar a linguagem mais diversa, porque as matrizes também são estruturas de regulação e repetição. Matriz vem de mater, uma referência feminina, o já nos fala da dialética binária. Na verdade, almejo por algo entre os dois, mas ainda não cheguei lá, portanto recupero a matriz. Estou eu própria a reeducar-me a ir buscar e a ativar a usar de novo esta palavra, sendo que o que é importante reter da realidade fractal é que estas matrizes são naturais, flexíveis e contextuais, pois respondem sempre às condições em que nos encontramos.
A grande questão numa realidade fractal é a ideia de causa-efeito. Aquela ideia reducionista de consequências lineares e directas que negam a complexidade das coisas. Estamos numa rede multidimensional onde a causa-efeito é muito difícil de limitar porque há muitas causas e há muitos efeitos, todos a acontecerem em simultâneo, e daí a importância da participação e co-criação. Prefiro chamar-lhe co-emergência, afinal estamos neste processo de devir contínuo, em imanência. Esta realidade fractal está sempre a evoluir, mas a desenvoluir também. Está sempre a transformar-se em conjunto. A submergir e a emergir. Não há só um movimento, há muitos movimentos em simultâneo. E daí que para a nossa mente muito educada no binarismo de causa-efeito linear, seja mesmo muito difícil e desafiante integrar os fractais.
Então este ciclo de matrizes pela natureza pelo nosso corpo permite o quê? Se quisermos aqui dar a algum sentido de utilidade porque às vezes é importante – post-its para o neocórtex – Permitem o fluxo de energia e energia é diálogo. Esta ideia de matrizes fractais é fundamental como diálogo entre as transições e os limiares. Trabalha diretamente com limiares, transições e transformações vivos. Tal como nós. Portanto, os fractais são a vida a continuar em co-emergência, onde tudo contribui com algo. Não são lineares, não há linhas retas nesta dimensão. É algo que nos ajuda a trabalhar com o caos e a complexidade que é das coisas mais difíceis, pois perdemos esta sabedoria.
“Na filosofia aborígene, o universo é um padrão composto por outros padrões, de sistemas dentro de sistemas. É uma visão holística em que tudo está inter-relacionado e interdependente. Nada existe isoladamente. Toda a vida e tudo está vivo numa cosmovisão aborígene existe em relação a tudo o resto: “Imagine um padrão. Este padrão é estável, mas não fixo. Pense nele em tantas dimensões quantas quiser, mas tem mais de três. Este padrão tem muitos fios de muitas cores, e cada fio está ligado a, e tem uma relação com, todos os outros. Os fios individuais são todas as formas de vida.”
– Ambelin Kwaymullina & Blaze Kwaymullina
Muitas culturas contextuais têm o fumo como sagrado, considerado um agente divino que trespassa pela teia e penetra na pele, sendo um agente de transformação profundíssima. E vivo, pois é também ligado ao vento e ao ar. Estamos numa profunda e viva interpenetração sistémica entre o eu, o mundo e todos os outros humanos e não humanos. Toda a normalização, mono-história, linearização e superficialização não nos permitem resgatar a sabedoria da teoria do caos – que nos sussurra algo que todos sabemos: que temos uma previsibilidade muito limitada da vida, que há muitos processos naturalmente em descontinuidade apesar da ansiedade que nos gera. Porque não discernimos outros fios, porque vivemos numa mono-história, vivemos limitados.
Complexidade
A constante confusão entre complexidade e complicação, revela o que perdemos, esquecemos e se tornou invisível na psique ocidental. Não conseguimos articular porque a nossa cultura perdeu essa linguagem, ao mutilar os territórios da complexidade, mutila-se a si própria.
A teoria da complexidade revela como o desenvolvimento e a mudança criativa se auto-organizam, sempre numa estrutura é fractal e sempre a emergir em espontaneidade à beira do caos. Nunca achamos que vivemos à beira do caos!? Mas as coisas só se transformam aqui nesta fronteira, neste limiar à beira do caos. Os sistemas demasiados estáveis morrem, pois não têm a hipótese de se transformar. Num cosmos vivo a estrutura sendo fractal está sempre neste processo de evolução.
A geometria fractal deteta as matrizes complexas que existem nas partes e no todo deste sistema vivo. O que inclui todas as fronteiras e paradoxos porque o sistema está em simultâneo, aberto e fechado, delimitado e não delimitado.
Uma definição de fractal diz que é um tipo de padrão que é infinitamente complexo. A essência um fractal é um padrão que se repete para sempre, literalmente no espaço e no tempo, e cada parte do fractal, independentemente da forma como se nós vamos para dentro ou para fora dele, parece muito semelhante.
Recordo que não é pela lógica que entendemos os fractais, precisamos de nos abrir não só às sensações, mas às qualidades do nosso lado direito do cérebro no seu estilo não linear – os símbolos, intuições, linguagem onírica – são o que consegue entender o que é um fractal. Entender nem sequer é a palavra correta, mas viver um fractal.
Falamos das irregularidades, descontinuidades, dos erros, daquilo que na nossa linearidade achamos que é um problema a ser resolvido. Mas o fractal traz-nos mais contexto, relativizando a nossa posição e permitindo um olhar dinâmico.
Homer Smith diz se gosta de fractais é porque é feito deles. Se não suporta fractais é porque não se suporta a si próprio.
Os fractais estão também presentes na mitologia, na arte, na psicologia, na espiritualidade, sempre que encontramos um paradoxo estamos na presença de um nó de fractal. Somos feitos deles, mas perdemos as ferramentas e a linguagem para conseguirmos reconhecer esta estrutura fundamental.
Intersubjetividade
Todas as nossas psiques, geografias, em todos os nossos lugares, com as nossas respirações e corpos, histórias, memórias e experiências, tudo isso cria um espaço inter-subjetivo que não conseguimos domar – é em si próprio um espaço/tempo selvagem. Altamente vivo. Altamente metamorfo.
A geometria fractal leva-nos a esta dimensão da complexidade e do mistério e paradoxo.
Podemos tomar contacto com os nossos próprios fractais na nossa história de vida, os fractais que compõem a nossa identidade. Quais são as matrizes da nossa identidade? Quais são os padrões da nossa história?
A vivência plena que todos temos desta realidade fractal é uma forma de compreendermos a complexidade, e compreender a complexidade é mesmo importante nos tempos que correm. Ao estarmos numa realidade cultural tão invasiva, linearizada e superficializada é aí que os binarismos se confrontam, o certo e errado, seja a nível político, ecológico ou histórico. Mas quando começamos a permitir-nos ser porosos à complexidade real, então começamos a adentrar a nossa própria identidade fractal e reconhecer a diversidade – que implica aceitar o violador e o perpetrador em nós. Implica aceitar essa responsabilidade desse processo também.
E a sabedoria que a geometria fractal nos pode trazer é infinita e maravilhosamente complexa – um resgate cultural daquilo que perdemos, da intrincada sabedoria que os lugares nos trouxeram. Os lugares como fractais nos trouxeram e que branqueamos e esquecemos. Estas fronteiras e transições são fundamentais na geometria fractal porque é aí que ocorrem as mudanças, onde ocorre o movimento dinâmico de vida em transformação – nasce, evolui e morre.
Resgatar
O que podemos aqui resgatar? É o dinamismo desta escala, elástica e orgânica, tão grande quanto pequena. E se há momentos em que a geometria fractal me possa fazer imenso sentido, mas nem sequer consigo traduzir por palavras ou explicar, mas há outros momentos onde nos sentimos totalmente desligados desta realidade estocástica. À beira do caos. Onde nos sentimos desligados desta coemergência constante. E as duas coisas são verdade, parece um paradoxo. O nosso neocórtex quer controlar a situação e fechar os fractais, o caos e a complexidade numa caixinha e dizer – ah está aqui o fractal já o entendi. Mas é algo que nunca vamos compreender totalmente e está tudo bem. Não nos tornamos mais válidos, mais reais ou mais verdadeiros por isso.
Apenas podemos estar disponíveis para estas bordas dos fractais onde se encontram as transições, onde ocorre a metamorfose e a transformação. São zonas rugosas, acidentadas com precipícios, pois não há transições suaves e serenas. Não existe vida sem crise por a vida ser fractal e mudar inevitavelmente de estado.
Quando adentramos, vivenciamos e incorporamos o caos, a complexidade e a estrutura fractal há uma perceção ou vivência de que todas as escalas são reais, todas as perceções sejam emoções, memórias, sensações ou estados de alma, está e existe. Não é dar significado, não tem nada a ver com dar ou encontrar significado. Somos altamente viciados em significados e isto corrói-nos também porque deixámos de conseguir simplesmente estar – não digo que os significados são maus. Porém, não são tudo, a conclusão não é tudo.
Temos falado neste artigo do eterno e constante dinamismo e movimento, que há uma estrutura, mas nem sempre vamos saber o que ela significa. Todas as nossas fases, sazonalidades, momentos, crises ou alegrias não têm de ser interpretados, esquematizados, regulamentados ou categorizados. São a vida, ela própria a expressar-se, a passar por nós, a sermos nós e a sermos mundo e cosmos e essa é a realidade do fractal e do emaranhamento.
Para citar este artigo:
BATALHA, Sofia. Fractais. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-40/fractais/, número 40, 2022
A grande questão numa realidade fractal é a ideia de causa-efeito. Aquela ideia linear de consequências lineares e directas que negam a complexidade das coisas. Estamos numa rede multidimensional então a causa-efeito é muito difícil de lá chegar porque há muitas causas e há muitos efeitos, todos a acontecerem em simultâneo, e daí a importância da participação e co-criação. Prefiro chamar-lhe co-emergência, afinal estamos neste processo de devir contínuo, em imanência. Esta realidade fractal está sempre a evoluir, mas a desenvoluir também. Está sempre a transformar-se em conjunto. A submergir e a emergir. Não há só um movimento, há muitos movimentos em simultâneo.
Sofia Batalha
Fundadora e Editora da Revista
Mamífera, autora, mulher-mãe, tecelã de perguntas e desmanteladora o capitalismo-global-colonial-tecnológico um dia de cada vez. Desajeitada poetiza de prosas, sem conhecimentos gramaticais. Peregrina pelas paisagens interiores e exteriores, recordando práticas antigas terrestres, em presença radical, escuta activa, ecopsicologia, arte, êxtase, e escrita.
Honor hystera. Re-member. Response-ability. (un)Learn together.
Autora de nove livros e editora da revista online Vento e Água, Comadre conversadeira no podcast Re-membrar os Ossos e em Conversas D'Além Mar. Instagram, Serpentedalua.com, Sofiabatalha.com
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