artigo de patrícia rosa-mendes

Viagem, Jornada e Labirinto:

A menopausa e a segunda etapa da vida

3 MIN DE LEITURA | Revista 39

Now that I am free to be myself, who am I?

(…)

And my heart panics not to be, as I long to be, 

The empty, waiting, pure, speechless receptacle.”
Mary Oliver, Blue Iris

Nas estórias antigas, aparece com frequência uma velha. Muito velha, ou muito feia; trazendo ajudas ou enganando, podemos contar com a sua presença para nos remeter ao mistério. Acredito que as estórias são como mapas ou bússolas, trazendo pistas que nos ajudam a navegar pela nossa história pessoal, e pela história comum que partilhamos com os outros seres vivos, e por isso tenho-me esforçado por encontrar estórias que me falem mais dessa Velha, a que vive na floresta, e que é tão esquiva como uma raposa. Gostaria de a conhecer melhor, de passar umas temporadas com ela, nessa casa na floresta, dormindo sob as estrelas e caminhando longas horas pelos trilhos perdidos; absorvendo toda a sua sabedoria, que vai muito para lá das palavras ou dos conselhos. Na verdade, eu sei que essa Velha está dentro de mim, bem fundo, nos meus ossos, e a cada dia que passa se vai espalhando mais um pouco, até um dia me poder habitar por inteiro. E, ainda assim, não sei bem quem ela é, nem em quem me tornarei, ou o que me espera para ser vivido. Sei que estou num espaço liminar onde o que era já não é, mas o que há de ser ainda não está encorpado, o que faz deste um lugar de reverência e mistério e de profundo desconforto. 

Falo da entrada nesta terceira etapa da vida da mulher que é marcada pelo acontecimento da menopausa e de tudo o que o envolve. Só o nome evoca tabu e desconforto, aquelas coisas que uma certa educação antiquada reservava ao domínio íntimo das conversas femininas, ou apenas aos diagnósticos médicos, escudados na esterilidade do olhar clínico. Para a medicina, onde o modelo era a experiência do masculino, a menopausa foi durante muito tempo um déficit, uma falha, cujos sintomas eram vistos enquanto patologia e tratados para tal. Para a sociedade, antropocêntrica, a menopausa era a perda do papel da mulher enquanto reprodutora, e consequentemente, um relegar para lugares (ainda) mais secundários, numa fase transitória antes da total invisibilidade da velhice. Fosse de que prisma fosse, para muitas de nós, a menopausa está associada a perda: da fertilidade, da energia jovial, da elegância e da beleza normativas, do propósito a que o lugar que nos foi dado nos remetera… perda e desconforto físico, em doses diversas, das mais leves às mais dolorosas. 

Nesta cultura em que a sacralidade da vida e dos seus ciclos foi sistematicamente subjugada até ao esquecimento, não há memória de rituais, de mitos ou estórias que sejam candeia e âncora para as mulheres que estão a entrar nesta etapa. Enquanto coletivo, perdemos o acesso à mitopoética das etapas de vida (crises individuais, por um lado, e acontecimentos sociais, por outro) e esquecemo-nos da importância dos rituais nestas mesmas transições. Aqueles que se dedicaram a escavar a antiguidade em busca de ritos de passagem para a velhice são perentórios em dizer que não encontram rituais específicos, fosse porque não eram assim tantos os que lá chegavam, fosse porque a própria vida, vivida por inteiro e em consciência, era a grande iniciação.

O que se sabe é que nas culturas e tradições primitivas, o lugar da Velha (ou do Ancião), era o de um instrumento do Mistério e do Sagrado. 

Em pleno meio de vida, encontro-me neste lugar de transição, sem grandes orientações ou pistas, a não ser aquelas que o corpo e a psique me vão trazendo, intuitivamente. Não sei dizer quando começou, tal como não sei dizer quando irá acabar; habito um completo paradoxo, uma experiência que identifico tanto como comum, quanto extraordinária. Mas reconheço-a como uma experiência de alma, uma vivência de corpo e uma iniciação. O corpo traz-me a experiência física, enquanto me sussurra sobre a alma; afinal, um e outro – corpo e alma – pertencem-se e acompanham-se. Partilhada com milhões de mulheres, arquétipo guardado no inconsciente coletivo, é também profundamente pessoal na forma como a vivo e como me toca. Como em todas as experiências de iniciação, retira camada atrás de camada, cobrando o preço daquilo que estimo, ou que me parece vital, deixando-me frequentemente, sem recursos, vulnerável e perdida. 

À medida que esta Velha vai ocupando mais o meu corpo, transformando-o no seu, apesar de toda a minha resistência e fracassadas as minhas tentativas de agarrar a forma que em tempos foi minha, mais camadas se vão queimando, literalmente, a cada afrontamento. Se sempre recorri ao símbolo para me relacionar com a Vida, agora parece-me que essa é a única linguagem neste novo mundo em que vou entrando aos poucos. Vou ardendo no meu caldeirão interno, purificando-me em ondas de suor, e a cada dia tomando consciência do tanto que está a morrer, do tanto que precisa morrer, e também do tanto que não quer morrer. A cada ciclo, pessoal, lunar, sazonal, vou revivendo os traumas e as marcas da infância, os dramas e as crenças da adolescência, olhando com uma nova clareza as regras pelas quais tenho vivido, como se a vida me oferecesse uma oportunidade para recapitular o que foi até aqui, para que daqui em diante, eu possa escolher o que fica.  

Como um Ouroboros, o símbolo da serpente que morde a sua própria cauda, esta iniciação de fogo começa com a separação do que até então tinha sido, levando-nos numa travessia iniciática que só terminará com o regresso ao ponto de partida.

Não seremos, contudo, as mesmas, apesar de fundamentalmente sermos iguais. Quer tenhamos percorrido a viagem na companhia das imagens míticas e dos símbolos, quer a tenhamos feito alheias a tudo isto, teremos atravessado para a segunda metade da vida, aquela em que o convite é feito por esta Velha na orla da floresta: aquela que, nas palavras de Marion Woodman, “nada tem a perder, (porque) pode ser quem é, pode viver com a verdade nua e crua.”

Nesta cultura em que a sacralidade da vida e dos seus ciclos foi sistematicamente subjugada até ao esquecimento, não há memória de rituais, de mitos ou estórias que sejam candeia e âncora para as mulheres que estão a entrar nesta etapa. Enquanto coletivo, perdemos o acesso à mitopoética das etapas de vida (crises individuais, por um lado, e acontecimentos sociais, por outro) e esquecemo-nos da importância dos rituais nestas mesmas transições. 

Patrícia Rosa-Mendes

Patrícia Rosa-Mendes

Terapeuta Transpessoal

Terapeuta Transpessoal

Instrutora de Meditação

Formadora na EDT – Escola Transpessoal

Tradutora

Contadora de Estórias

Mitologia – Arte – Eco-psicologia

Patricia.mendes@escolatranspessoal.com