artigo de maria trincão maia

Sobre Prefixos

5 MIN DE LEITURA | Revista 39

A língua portuguesa é tida como complexa. Uma cornucópia de conjugações verbais, de palavras que se lêem de uma forma e escrevem de outra, de letras que assumem diferentes papéis em diferentes posições. De conjuntos de letras que se lêem de uma forma e de uma letra que se lê da mesma forma, mas que por algum motivo só pode ser utilizada às vezes. É de tal forma complexa a escrita, que parece que foi criada para manter-se, pelo menos no início, restrita a poucos. Muito poucos, aqueles que passariam para o presente o que aconteceu no passado. E como foi na palavra escrita, não se poderá duvidar, mesmo que só transmita a visão de um restrito número de pessoas. Porém… assim como a língua evolui também o número de pessoas com acesso à escrita e à possibilidade de deixar escrito e mostrar outras visões do mundo. Recontar histórias, compreender outros povos, saber que existem palavras que nos colocam noutros pontos e mesmo que sejam altamente temidas em Portugal.

Os prefixos são afixos que se usam no início da forma base das palavras, que constroem novas dimensões dessa mesma palavra. E assim podemos criar paradigmas e novas formas de nos relacionamos não só com as palavras, mas com a história e o passado. Vamos reflectir sobre algumas palavras com ajuda dos seus significados na Infopédia da Porto Editora.

Colonização

co.lo.ni.za.ção | kulunizɐˈsɐ̃w̃

nome feminino

Acto ou efeito de colonizar, de criar colónia(s) em ou de transformar em colónia(s);

Povoamento por colonos de um território estrangeiro ou inexplorado;

Exploração (económica, política, etc.) de território(s) dominado(s) por uma nação, fora das suas fronteiras geográficas, estabelecendo controlo sobre as populações indígenas dessa(s) área(s);

Promoção ou imposição de valores culturais e civilizacionais junto de povos dominados política e/ou economicamente;

ECOLOGIA: processo de estabelecimento de uma espécie vegetal ou animal numa determinada área;

FIGURADO: invasão; ocupação.

O que a Infopédia nos permite perceber também é que num sentido figurado colonização é invasão, porém devido a nossa liberdade linguista nós chamamos descobrimentos. Sempre somos a língua de Camões e assim como Camões acreditamos que a nossa grande obra foram os descobrimentos. Como nos relacionaríamos connosco enquanto povo quando descobríssemos, e descobrir é des+cobrir, sendo que cobrir se refere ao acto de ocultar algo, que os nossos descobrimentos foram invasões. Facto ocultado e tão delicadamente escrito sempre por aqueles que o podiam fazer.

Descolonização

des.co.lo.ni.za.ção| dəʃkulunizɐˈsɐ̃w̃

nome feminino

Abolição da condição colonial de um território;

Processo de aquisição de independência ou de autonomização política por parte de territórios até então colonizados;

Supressão do caráter colonialista de.

Agora afixamos no início um “des” à colonização. Nós associamos a descolonização ao 25 de Abril, ao fim da ditadura de Salazar. Ao que nós chamamos Guerra Colonial em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique chamam Guerra de Libertação. O que nos deixa um pouco desconcertados, porque nós, os Portugueses sempre fomos bonzinhos, sempre salvamos os povos que fomos invadir, perdão descobrir. Pelo menos foi sempre a história que lemos e nos contaram. Porém a desocupação de territórios não é o único processo de descolonização, a Europa, colonizou grande parte do mundo, chegando a países e nações com os seus costumes, com a sua filosofia, a sua religião e ciência, aniquilando qualquer conhecimento que não seja o seu próprio. E aos poucos, começa a existir a descolonização do saber. Esse acto radical de questionar a forma como nos relacionamos com o conhecimento.

E claro que não poderemos analisar os comportamentos da altura com os olhos de hoje, porém podemos analisar os comportamentos de hoje em relação aos comportamentos da altura. O Padrão dos Descobrimentos foi inaugurado em 1960, no tempo do regime ditatorial de uma forte apologia colonial e de uma espécie de rescrever a grandiosidade Portuguesa como um povo escolhido por Deus. Também escolhido por Deus para passar fome, não saber ler nem escrever, ter uma alta de mortalidade infantil, ser feudal e recentemente ter quase a metade da população na pobreza. Tudo o que o Deus de Salazar queria, “pobre, mas honrado”. E nesta candura seguimos. Com a mesma inocência não questionamos as obras deixadas pelo Salazar que nos remetiam para essa grandiosidade. Assim como assim, eramos pobres honrados lusitanos descobridores. Lembro que houve uma onda de grande indignação portuguesa quando este monumento foi vandalizado, como se de um ataque à nossa identidade se tratasse. Porém, não é realmente nossa mas uma imagem criada por um ditador. E vamos manter?

O que nos leva a outra palavra:

Pós-colonial

pós-co.lo.ni.al | pɔʃkuluˈnjaɫ

adjectivo de 2 géneros

Posterior ao período colonial

Posterior ao colonialismo

Relativo ao período que sucedeu ao fim do regime colonial

Relativo ao pós-colonialismo (área de estudos interdisciplinares)

 

Viemos (tarde) derrotados das Guerras de Libertação. O processo da descolonização entrou em marcha nesses territórios e passou para o pós-colonial. Que segundo reza a lenda nós também fomos super bonzinhos e ajudamos imenso, todas os países que foram colonizados estabelecemos boas relações. E já se sabe o que se gosta de dizer em Portugal: aquilo sem nós era uma confusão. E outras coisas que incluem insinuações sexuais, laborais, funcionais, que não ouso sequer reproduzir, mas que se ouve facilmente numa mesa de portugueses num país que racismo é crime. Está tudo bem, afinal não há racismo em Portugal já dizia o (des)Ventura.

Porém (Pereira, 2020) o pós-colonialismo em Portugal é considerado uma etapa histórica, como um evento cronológico sem real reverberação nas várias areias de conhecimento, o que resultou na escassa crítica na Academia Portuguesa sobre como este é produzido, mantendo a imagem criada pelo Ocidente de fonte de conhecimento mesmo sendo esta lógica alicerceada em relações assimétricas de poder.

Assim somos levados a ausência de uma palavra cunhada nos movimentos pós-coloniais académicos principalmente na américa latina, mas especificamente o académico peruano Anibal Quijano, que não existe no nosso dicionário: colonialidade. Pode se entender a colonialidade como a herança do colonialismo. E esta herança é social, económica, académica e da forma de viver e pensar. A colonialidade transcende o colonialismo porque não acaba com a descolonização. Assim como Anibal Quijano e Walter D. Mignolo falam sobre como a modernidade está assente na colonialidade perpetuando dinâmicas assimétricas de poder.

E assim chegamos à última palavra:

Decolonial

de.co.lo.ni.al | dəkuluˈnjaɫ

adjetivo de 2 géneros

Relativo à crítica do colonialismo e à persistência, num período pós-colonial, de relações e matrizes de poder decorrentes do colonialismo (em especial em povos ou países que, no passado, foram alvos de processos de colonização)

Não existindo a palavra colonialidade no dicionário português de Portugal, decolonial não pode ser entendido como o movimento crítico de uma estrutura de poder persistente e resiliente que é perpetuada pelas relações entre o que é ocidental e não ocidental. Sem a noção de colonialidade como a base para suportar as grandes injustiças da modernidade, parece que vivemos num mundo injusto só porque a meritocracia é real, retirando mais uma vez toda a possibilidade de ouvir outras vozes, de conhecer diferente. Será que a Europa e a América do Norte estariam como estão senão tivessem (e continuam a explorar) explorados continentes como Africa?

Descolonização e Decolonialidade são temas sensíveis em Portugal, talvez porque não paramos para compreender que a nossa identidade nacional foi coaptada pela visão nacionalista de um regime ditatorial. Que a “promoção ou imposição de valores culturais e civilizacionais junto de povos dominados política e/ou economicamente” foi o que nos aconteceu no regime do estado novo, e que até hoje mantemo-nos prisoneiros desses mesmo valores enquanto povo. Como poderemos construir um mundo mais justo se mantemos relação de colonialidade connosco e com os outros?

 

Referencias

Pereira (2020) – Rui M. Pereira COLONIALISMO, PÓSCOLONIALISMOE COLONIALIDADE – LUGARES DE MEMÓRIA.PARA QUE SERVE UM MUSEU DOS DESCOBRIMENTOS? Trabalhos de Antropologia e Etnologia,60, 371-381

Como nos relacionaríamos connosco enquanto povo quando descobríssemos, e descobrir é des+cobrir, sendo que cobrir se refere ao acto de ocultar algo, que os nossos descobrimentos foram invasões. Facto ocultado e tão delicadamente escrito sempre por aqueles que o podiam fazer.

Maria Trincão Maia

Maria Trincão Maia

Editora da Revista

Pessoa, às vezes. À procura de alguma coisa que não sabe o que é. Caminhante por margens, que às vezes anda de carro ou bicicleta elétrica. Uma espécie de estudante e uma estudante de espécie. Designer mas não sabe de que... ainda. Porém, quase preferencialmente: uma metamorfose ambulante.

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