Ciclos da Terra e da Alma

Coluna de IRIS LICAN GARCIA

4 MIN DE LEITURA | Revista 39

Quem mata o Deus Veado? 

Ode ao caçador bravio e primordial 

Sabes como morre um Deus vivo caçador? 

Não penses demais sobre isso. 

Segue para a caça. 

Sim, é o chamado dos ancestrais, está – te no sangue. 

Caça caçador, é um chamado. 

Mas caça com a dignidade inteira de quem caça para comer e não apenas para matar. 

Espera caçador. 

Se é o chamado ancestral que sentes, larga a espingarda, não servirá. 

Pega então no silex, molda a lâmina com engenho. Apura a visão, a força a paciência. 

Mirar de longe é para cobardes. A caça como a guerra ou é corpo a corpo ou de longe é pura cobardia. 

Espera caçador, se é o chamado ancestral que sentes, caminha descalço e sem cães famintos. Se vais caçar, segue como os povos antigos: entra em oração, purifica – te, despede – te da tua tribo, entoa o cântico do espírito do animal que vais caçar. Vai descalço, sentindo o chão e a força dos teus músculos. A tua força no gatilho não serve, é a força dos preguiçosos. 

Vai sozinho ou num pequeno grupo, vai descalço, leva a lança. 

Caçar não é um ritual?! Seja inteiro então.
No ritual todas as partes integrantes são sagradas. Todas. Antes de caçar, considera.

Vai e olha nos olhos a presa, de perto. Sente o medo de morrer à mão da sua força, porque tal como dizia Artemis senhora grega da caça: o caçador é o caçado. Então, vai com dignidade e coragem, sem maior número, arma ou camuflagem que te proteja. Vai inteiro. 

Mata caçador, mas com o medo de morrer no teu coração, o teu. Mata com o medo do animal diante dos teus olhos. Sabes, para alguns, homens como animais, tu és a presa. À morte ninguém é alheio. 

Queres caçar? 

Antes reverência, veneração. 

Do Rei do Bosque, veado. Do Javali, Guerreiro. 

Do Lobo Sábio, do Urso Ancestral. 

Loucura?! 

Loucura é não saber que serás enterrado sob o mesmo chão que tudo o que matas. 

Sabes porque dizimaram em massa os teus modernos ancestrais? 

Para matar o saber espiritual intrínseco à Natureza viva, ao fazermos parte dela e afirmar soberania sobre ele. Matar a vida animal, mineral, florestal foi a forma mais firme de quebrar o espírito e corromper a fé divergente da do conquistador. 

Porém aqui estamos conversando. 

A nossa vida é uma mensagem. Quando entregue, extingue-se. Daí que a minha voz tem mais valor do que eu. Isso tornar-me livre e resiliente, de espalhar saber e semente e de lhes ser fiel. 

Caça caçador. 

Depois de matar, esventra, separa, preserva cada parte pelas tuas mãos. Sem fotos nem exibição que a morte não é espetáculo, é uma dádiva receber uma vida para sustentar a nossa saúde. Agradece ao animal que comes, porque te dá vida a partir da sua. 

Queres ritual? É isto. Cuida a pele, carne, ossos, entranhas, usa tudo e no fim, só no fim de gasto, podes caçar outra vez. Até lá, não. Mas faz tudo por tua própria mão, caça, prepara, seca, come, usa. Se é ritual seja inteiro. Se é ancestral seja primeiro. 

Ou não tens a capacidade dos primeiros homens e apenas o comodismo das classes hierárquicas modernas, que matam de longe para não morrer na tentativa de matar? Sem confronto de iguais só há cobardia. Caça como um verdadeiro homem ou mulher, frente a frente. 

Porque quem mata e dá aos outros o cadáver para arranjar fá-lo como forma de nos dizer a todos que tem poder sobre a vida, a morte, a floresta que é sustento e alimento. Essa promoção do poder já não serve. 

Os teus ancestrais não estão tauados a apelido: os nomes puco valem perante o tempo.
Os teus e meus ancestrais primeiros, há 12.000 anos atrás, teriam orgulho ou vergonha ao testemunhar a forma como caças? Considera. Toda a linhagem começa aí e se mantém através da água, ar, alimento que nos dão saúde e corpo, permitindo vida.

Dominas a vida? Ilusão. Saber matar não basta, é preciso saber matar com reverência, sem qualquer ponta de excesso, crueldade ou prazer, em consciência. Mas a pauta maior do equilíbrio é saber preservar a continuidade da Vida.

Como se mata um Deus vivo caçador? 

Quando nunca se conheceu Deus e se confunde poder com sagrado. Arrogância e ignorância são irmãs. 

Quando se manda a mensagem de controlo total da paisagem e seres vivos, quando se tece impunidade perante a morte sem razão de ser. 

Não caçador, não caças para comer. 

Caças porque trazes valores invertidos incutidos a violência familiar e de classe. 

Caças para nos dizer que ainda somos presas e perante o teu poder podemos horrorizar-nos mas nada mais podemos senão aceitar. 

Caçador : a morte toca a todos. 

O medo, a dor, também. 

Fecha os olhos caçador e vê os primeiros homens caçadores na sua bravura crua oferecendo a vida e a prece à sua caça. 

A impunidade não é verdadeira. 

Levas contigo o sangue e a dor. Não a sentirás agora, mas o agora não é tudo. 

O tempo virá. 

À morte ninguém é alheio, nem tu. 

O seu tiro é certeiro e consciente. 

A morte é invencível. 

Não a controlas e não a podes desrespeitar acreditando que a determinas.

Não te iludas: não és eterno e os teus filhos não te eternizam. O teu nome será esquecido, perdido. O tempo caça a todos nós. 

Daí que, mensagens violentas de nobreza arcaicas doentes e opressoras, vestidas de lobbies políticos e seus representantes, são talvez, a mais profunda forma de miséria contemporânea. 

Sabes porquê? 

Porque os pobres e simples sabem cooperar para criar a partir do nada. Quem se habitua a ser servido compactuar com a ignorância. 

Nós sobreviveremos sempre e traremos de volta cada animal, planta, lugar, saber e sagrado chacinado. 

Não precisamos de nome, título ou cargo: temos mãos e saber vivo. 

Passou e passará. 

Como se mata um Deus vivo caçador? 

Foste caçado caçador. 

O Deus Veado e javali perduram e perdurarão e quem o sente bem o sabe. Somos a sua voz, o seu grito, o seu retorno e preservação presente. 

Se não o sentiste, aguarda. Há sempre na vida um momento que nos leva a contemplar tudo o que quisemos negar. 

Só vive e morre em Paz quem semeia respeito ao viver. 

A maior coragem é nobreza serão sempre preservar a vida ao invés de a dizimar em vão. Porque o nosso desejo não pode significar destruição mas simples e tão somente cuidar necessidades essenciais não só ao corpo mas à Alma, que é o mundo vivo. 

Como se mata um Deus vivo caçador? 

Quando nunca se conheceu Deus e se confunde poder com sagrado. Arrogância e ignorância são irmãs. 

Quando se manda a mensagem de controlo total da paisagem e seres vivos, quando se tece impunidade perante a morte sem razão de ser. 

Íris Garcia

Íris Garcia

Colunista e Autora regular da Revista

Sou a Íris. Sou Mãe, Terapeuta e Educadora Psico-Somática, Formadora de Fertilidade Consciente, Yoga Terapeuta, Doula, Mulher Medicina, Herbalista, Artista de Dança, Autora, Investigadora e ecologista. As minhas linguagens primeiras são a Natureza, a escrita e o movimento. Caminho, danço e escrevo desde que me recordo. O que me move é a vontade de cultivar equilíbrio sistémico a partir do respeito pela Natureza intrínseca de cada pessoa e sua experiência íntima e única,  em inter-conexão com as suas relações humanas e naturais, desde o lugar do corpo em proximidade orgânica com a Terra Viva.

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