Biografia dos dias sem princípio

Coluna de Inês peceguina

4  MIN DE LEITURA | Revista 39

Queda anunciada ou re-princípio

Gosto do Verão. Do calor. Da leveza da roupa. A ondulação crepitante. Os dias longos. Já noite mas dia, ainda. O cheiro do Verão. A antecipação do tempo lento. A ideia do mergulho, secar ao sol, rapidamente. Outro mergulho. O cheiro da noite. Os sons. Secos. As trovoadas. Secas. Depois, às vezes, a chuva. Para relembrar que tudo é cíclico. Gosto dessa chuva e dessa humidade que é surpresa e que não é regular. O cheiro outra vez. Terra. Cresci no Alentejo interior. Preservo uma fantasia e uma resistência ao tempo quente. Uma habilidade para respirar o irrespirável. Embora já não consiga com a mesma facilidade da minha criança interna, respirar tão facilmente a ondulação. Mas gosto da memória. Da distância. Da fantasia. 

Creio que nos esquecemos todos um pouco, de todas as vezes, dos ciclos. Persiste, em mim, uma resistência a essa mudança da luz. Até o sol se posiciona de forma diferente no céu de outono, derramando uma luz mais suave em inclinações sombrias que anunciam a mudança que se aproxima (Even the sun sits differently in an autumnal sky, sending a mellower light in somber slants that foretell the coming change, Lanham, 2017).

Quero ir com os pássaros. As andorinhas que se alinham no estendal. A combinar a rota, a distribuir lideranças. Em ciclo. A frente é, depois, o centro e, depois, a retaguarda. A distribuir o cansaço. O olhar. 

Imagino que, em algum momento da minha história humana, o Outono fosse o tempo de partir. Quando ainda nos movíamos em consonância com os nossos ritmos cronobiológicos. A adaptação não é sempre uma coisa boa. Quando quer sempre dizer ficar. Permanecer. 

Naturalmente que descobrimos formas de sobreviver sem a facilidade da luz e a abundância de alguns alimentos. E que essa descoberta (trouxe) traz consigo outras descobertas e outras possibilidades de existência. Incluíndo de pensamento e de sentir. De observar… o paralelismo entre as estações e as estações da existência da vida. Primavera, verão, outono inverno; infância, adolescência, adultez, velhice. Com o amadurecimento e a necessidade de encontrar outras razões que alimentam o sentido. Adaptação. Envelhecer também é bom.  

No inglês, o outono é também dito fall. A queda. A decadência. A descida depois do topo. Porém, novamente os ciclos, não se trata exactamente de uma queda. As folhas caem, sim, algumas, os cabelos também, alguns. E as sementes chegam outra vez à terra. E as sementes todas carregam consigo o próximo Verão, algumas delas, milhares de Verões (Muir, 2009). Nessa queda anunciada, está quantas vezes o princípio do novo? 

A natureza está em movimento (…) migra, armazena, e morre. Tudo se acelera ou demora. Algumas coisas apressam-se a lançar as sementes da próxima geração. A borboleta monarca em urgência, nas suas finas asas pretas e laranja, reune a doçura crescente das flores antes que a geada a trave. Os pomares frutíferos fazem uma última chamada. Raposas, veados, guaxinins, e perus selvagens engordam no banquete. O ar é temperado com o cheiro de folhas que morrem. O perfume da decadência acumula-se à medida que as bagas amadurecem transformando-se em vinho selvagem (Lanham, 2017).

Há uma abundância, outra abundância. E há um sentido qualquer de paragem. Lugar onde se para. Regresso. Um desejo de proximidade. De quietude. E de silêncio. Uma espécie de menstruação da terra. Substituição de sangue e de vida. Agora que ficamos, e já não somos andorinhas, sinto a densidade dessa impossibilidade para (me permitir) mudar a minha pele. Tudo o que tem de continuar, ou recomeçar, agora, é feito com um esforço maior. Por não encontrar esse lugar de paragem. Ou por não conseguir lá ficar o tempo que seria necessário. Não me deixo outonar. Não me deixo cair. Varro com avidez as minhas folhas, sem lhes conceder o tempo da morte. Que é lento.   

O paralelismo outra vez. A presença-ausência da luz. A viagem diária da luz. O nosso corpo em ciclos que se repetem a cada 24 horas. Temos um relógio interno, sim. O outono como fim de tarde, pôr do sol. É mesmo para aligeirar o ritmo. E preparar-se para abrandar ainda mais. O Outono como bocejo. A investigação sobre o sono diz-nos que a sobrevivência é melhor assegurada quando dormimos, ou nos deixamos num estado de torpor. Que esse lugar de paragem, quando seguro – é preciso sempre uma certa confiança nisto de se deixar adormecer (e é por isso que o sono das crianças precisa tanto da proximidade física dos seus cuidadores) -, esse lugar, dizia, permite maximizar a poupança de energia, reduzindo os consumos energéticos do corpo e, ainda, recuperando uma variedade de processos (Siege, 2005). Re-construíndo. Re-generando. É neste sossego que nascem outras coisas. É neste tempo lento que é ao mesmo tempo-lugar de fim e de princípio. 

Ainda nos debatemos com as transições, porque ainda somos pouco desenvolvidos neste planeta. Talvez ajudasse se tivéssemos mais paragens, como os Sami, as pessoas indígenas da Escandinávia, que têm oito estações. Ao contrário de muitos animais e plantas que tiveram milhares de anos para se adaptarem à temperaturas baixas, os humanos permanecem extremamente frágeis e pouco adaptados. Somos bichos tropicais, originários da savana Africana (acredito nesta teoria). Não desenvolvemos pêlo. Desenvolvemos abrigos. O ‘Ötzi’, o homem do gelo que viveu há mais de 5000 anos e que é também a múmia mais antiga encontrada na Europa (nos glaciares dos Alpes), vestia cinco camadas de pelo e pele de animais (Brunner, 2017).  

Gosto do verão. E do calor. Da leveza da roupa. E nesta queda anunciada, que é afinal um reprincipiar, nunca do mesmo lugar, nunca nada regressa ao exatamente princípio, queria acender uma fogueira. Rodear-me do calor de alguns outros. Contemplar a posição do sol, a posição da terra, a luz suave nas inclinações sombrias. As sombras. Enrolar-me no casulo, entrar em modo energy saving, e dar (me) espaço-tempo para deixar nascer o que ainda não sei. A poesia nasce do que está por vir. Do que será. E é (sobretudo) a dormir, que se sonha. 

O Outono devia ser para sonhar. 

Referências bibliográficas:

  • Brunner, B. (2017). Winter is a time of regeneration: we’ll miss it when it’s gone. Aeon Magazine. https://aeon.co/ideas/winter-is-a-time-of-regeneration-well-miss-it-when-its-gone
  • Lanham, J. D. (2017). The home place: Memoirs of a colored man’s love affair with nature. Milkweed Editions.  
  • Muir, J. (2009). John of the mountains: The unpublished journals of John Muir. University of Wisconsin Press.
  • Siegel, J. M. (2005). Clues to the functions of mammalian sleep. Nature, 437, 1264-1271. https://doi.org/10.1038/nature04285

O paralelismo outra vez. A presença-ausência da luz. A viagem diária da luz. O nosso corpo em ciclos que se repetem a cada 24 horas. Temos um relógio interno, sim. O outono como fim de tarde, pôr do sol. É mesmo para aligeirar o ritmo. E preparar-se para abrandar ainda mais. O Outono como bocejo.

Inês Peceguina

Inês Peceguina

PhD em Psicologia do Desenvolvimento e Pós-Doutoramento em Psicologia da Educação

Pessoa que se intriga.
Investigadora no Centro de Estudos e Pesquisa, da Operação Nariz Vermelho.
Com deambulações pelos territórios da Psicologia e da Educação.
Quase 12 anos de experiência no papel de mãe, a cometer os erros clássicos e mais alguns.
Pessoa que se encontra na escrita e que às vezes na escrita encontra o outro.
Bailarina de fim-de-dia e atleta de nascer do sol.