Mil-em-Rama

Coluna de maristela barenco

3 MIN DE LEITURA | Revista 39

Quando o desejo pessoal encontra a Justiça

A noção ilusória de uma separatividade entre nós e a natureza, entre nós e os animais, entre nós e os outros, entre nós e o planeta vem se constituindo, neste ultimo século, através da noção de indivíduo, como categoria privada. Chamamos de ilusória porque essa noção, a da separatividade, forjou uma disjunção entre duas dimensões da existência que, quando coincidem, ampliam a potência do ser humano: a articulação entre propósitos individuais e propósitos coletivos. Em outras palavras, é a compreensão de que aquilo que viemos fazer nesse mundo, como missão, é algo que nos plenifica, mas também é algo que o mundo anseia. 

Para exemplificar essa coincidência de propósitos, quero contar um caso, que contei em minha tese de doutoramento(1). Refere-se a uma comunidade francesa, de tradição huguenote, na região de Auvergne, próxima à fronteira com a Suíça, chamada Le Chambon-sur-Lignon que, durante a Segunda Guerra Mundial ficou conhecida por sua proteção aos judeus perseguidos. Conta-se que, numa Europa dominada pelos nazistas e perseguindo e exterminando milhares de judeus, uma comunidade francesa de três mil agricultores e aldeões, de tradição huguenote, decidiram dar abrigo e proteção a judeus foragidos. Durante 4 anos abrigaram e salvaram entre 3 a 5 mil judeus, quase o dobro de sua própria  população, sendo que a maioria eram crianças. Logo o governo de Vichy tomou conhecimento do que se passava e, pressionados pelos nazistas, investiram contra Le Chambon. A comunidade, organizada, escondia os judeus nos campos até que as tropas se fossem. Quando a situação estava calma, a população de Le Chambon ia ao campo, cantando uma canção, que era a senha para que as pessoas deixassem tranqüilos os seus esconderijos.

Quando os nazistas assumiram a região, a Gestapo fez uma investida, capturando algumas crianças que foram conduzidas ao campo de extermínio, juntamente com lideranças locais. Uma delas foi o Dr. Roger Le Forestier, liderança local. Mas os aldeões não cederam. Um comandante militar alemão chamado major Schmehling, comovido com o depoimento do Dr. Le Forestier, em seu julgamento, tentou persuadir o chefe da Gestapo, coronel Metzger, da impossibilidade de se investir contra aquela população e seus intentos: “Eu disse a Metzger que esse tipo de resistência nada tinha a ver com violência, com nada que pudéssemos destruir por meio da violência.” (2) (URY, 2000, p. 40).

Aos poucos, a coragem dos aldeões foi comovendo as autoridades que passaram a fazer vistas grossas, mesmo diante das ordens nazistas. Embora o coronel da Gestapo não tenha se convencido, o major Schmehling, durante o tempo que seguiu a guerra, procurou atrasar a execução dos planos. 

Muitos anos mais tarde, entrevistados sobre tamanha coragem, os aldeões, já idosos, não atribuíam méritos às suas práticas e demonstraram agir da única forma que se deveria agir. O pastor local, Roger Darcissac disse: “Tudo aconteceu de forma bem simples. Não nos perguntamos por quê. Porque é um ato humanitário. Só posso dizer isso”. “Porque somos humanos, só isso”, desabafou uma camponesa já idosa. “O exemplo de Le Chambon demonstra que nós, humanos, talvez sejamos capazes de tornar o comportamento protetor tão comum quanto os hábitos de violência e guerra” (URY, 2000, p. 41).

Quando uma comunidade de aproximadamente três mil pessoas, em tempos de crise profunda, de perseguição e de medo, dispõe-se a acolher quase o dobro de sua população, por um ato humanitário – vemos um casamento entre o desejo e a Justiça, e o que advém dessa experiência é o alargamento da experiência humana. Que este conto nos inspire em tempos de tanta separatividade e violência.

(1) MELLO, Maristela B. C de. Uma educação ambiental como estética da existência e epistemologia dos nexos: a experiência socioeducativa do Projeto Florescer. Tese apresentada em junho de 2014 na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, no Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente (PPG-MA/UERJ.

(2) URY, W. Chegando à Paz: resolvendo conflitos em casa, no trabalho e no dia-a-dia. Tradução de Jussara SIMÕES. Rio de Janeiro: Campus, 2000.

Chamamos de ilusória porque essa noção, a da separatividade, forjou uma disjunção entre duas dimensões da existência que, quando coincidem, ampliam a potência do ser humano: a articulação entre propósitos individuais e propósitos coletivos. Em outras palavras, é a compreensão de que aquilo que viemos fazer nesse mundo, como missão, é algo que nos plenifica, mas também é algo que o mundo anseia.

Maristela Barenco Corrêa de Mello

Maristela Barenco Corrêa de Mello

Psicóloga e Doutorada em Ciências Ambientais

Formada em psicologia, com doutorado em ciências ambientais, estuda subjetividade, é professora universitária, idealizadora do Canal de Podcast Mil-em-Rama e participante do projeto Conversas do Além-Mar.

Professora do Departamento de Ciências Humanas do INFES - UFF
Professora do Programa de Pós-Graduação em Ensino - PPGEn-UFF
Professora Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente - PPGMA-UFF

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