Mitologia Criativa
Coluna de Élia Gonçalves3 MIN DE LEITURA | Revista 39
O Encontro com a Velha
– a Iniciadora de Processos –
“E a menina estremeceu.
– Avozinha, eu venho pelo fogo. A minha casa está fria… O meu povo vai morrer… Eu preciso de fogo.
Baba Yaga retrucou:
– Oh sim, eu conheço-te bem e ao teu povo. Bem, sua criança inútil… deixaste o fogo apagar-se. Isso é uma coisa muito imprudente de se fazer. E, além disso, o que te faz pensar que eu deveria dar-te a chama?
Vasilisa consultou a sua boneca e respondeu rapidamente:
– Porque eu pedi.
E Baba Yaga ronronou:
– Estás com sorte, essa é a resposta certa.”
Baba Yaga é essa figura mítica tão conhecida do folclore eslavo onde habita o arquétipo da “velha”, não propriamente a avozinha doce e nutridora que nos cuida e protege, mas um espírito meio selvagem, solitário e desconcertante que nos convida a situações de desconstrução, transgressão, novos olhares perante a vida ou perdas de ingenuidade. Cada uma das circunstâncias onde somos colocados pela sua mão apelam a momentos de iniciação.
O arquétipo da velha é comum a toda a mitologia do mundo, assim como a sua aparência meio descuidada, e o rosto assustador, seja ele por ter só um olho, dentes afiados ou feições de cores azuladas.
Na Escócia encontramos neste arquétipo as “bruxas da tempestade” forças da natureza que personificam tantas vezes elementos destrutivos, por vezes ligados ao vento. A Cailleach irlandesa está relacionada com os fins de ciclo e das colheitas, o frio e a soberania, pois ela é, também, a iniciadora e modeladora da terra, desde o início dos tempos. Em tantas outras tradições, a velha recoleta ossos e é muitas vezes vista cercada de pilhas deles.
Talvez devido ao seu aspeto pouco polido, às questões desconcertantes ou aos convites que nada têm de suaves, a velha tem sido remetida para a “bruxa má” ou a “velha louca”. Em verdade, ela não apresenta rigorosamente nada que o mundo racional, ordenado e linear valorize. Não é produtiva, não luta por status e não ostenta a beleza da juventude, tão fortemente cultuada de forma obsessiva e vista como fonte de poder.
Não cai nos dramas da vida comum e, ao nosso olhar, parece tirar um gozo particular das nossas tragédias, incertezas e confusão. Ri-se quando choramos, aparece quando não é esperada e dá-nos tarefas impossíveis.
Mas a Velha, essa que nos soa a louca, é a grande Iniciadora de processos, a portadora das histórias, aquela cuja sabedoria profunda foi alimentada pela experiência e vê para além de uma só versão. Ela é a guardiã de portais, um espírito limiar, vive entre mundos e não se deixa guiar pelo comum. Ela sustenta o paradoxo, cuidando da vida quando a morte vem. Mantendo a roda a girar, quando a vida necessita de tempo para morrer e renascer. Ela preenche o vazio entre os velhos ciclos e os novos. E ensina-nos a abrir mão do que está a ir.
Na presença da velha, sente-se a noite dos tempos, os grandes sacrifícios, as perdas e a alma do mundo. Ela habita o penhasco, a neblina, a floresta densa, as ondas furiosas. Caminha nas pedras e nos sulcos de neve.
E nas suas tão estranhas perguntas desconstrói-nos dos modelos que nos destroem lentamente. Nas impossíveis tarefas permite-nos o espaço necessário para que novos trilhos se abram. Nas suas gargalhadas fortes, relativiza os dramas pessoais perante a grande história e tudo o que vive.
Pois na verdade, ela aparece quando as chamas se apagam, quando as crianças se perdem na floresta, quando as donzelas estão prontas para se tornar mulheres. Nas grandes histórias é ela, a Velha, na sua presença complexa e pouco compreendida, que molda e orienta o rumo das personagens centrais. A sua grande compassividade é o lugar da Iniciação. Aprender a largar o que findou. Transgredir o “obvio”, o arrumado, previsível, para encontrar o lugar criativo de quem somos. E permitir que o trabalho e a astúcia se transformem nas vestes da maturidade para os ciclos que virão.
Afastada do sol e da leveza do calor, a Velha é o Inverno que chega e nos obriga a criar ninho. A tempestade que destrói, mas que reforça o rio. A chuva que molha e que nutre. A crueza da vida, no seu infindo abraço. A memória do que foi esquecido e carregamos em saudade.
Baba Yaga é essa figura mítica tão conhecida do folclore eslavo onde habita o arquétipo da “velha”, não propriamente a avozinha doce e nutridora que nos cuida e protege, mas um espírito meio selvagem, solitário e desconcertante que nos convida a situações de desconstrução, transgressão, novos olhares perante a vida ou perdas de ingenuidade.
Élia Gonçalves
Colunista e Autora regular da Revista
Psicóloga
Terapeuta Transpessoal
Sub-Direção EDT – Escola Transpessoal
Contadora de Estórias
Mitologia Pessoal Criativa
Autora do Mito de Ophídia
elia.gonçalves@escolatranspessoal.com