Onde mora o coração, histórias e paisagens

Coluna de Ana Sevinate

3 MIN DE LEITURA | Revista 39

Corações aos Molhos

Hoje escrevo como se desenhasse à vista. Desenho botânico, tosco, pueril e honesto. Como uma criança. Imagino uma caixa de lápis a estrear, verdes mil cujos tons ultrapassaram todos os nomes possíveis. Estou sentada debaixo da maior Tília que já alguma vez conheci. No abrigo dela, o banco de pedra, num gesto simples e circunspecto, convida-me a sentar. Vou traçando rabiscos à luz de um outono exemplar, à medida que me fundo com elas, com a luz e com a árvore de coração gigante. Tal como se fundem os sombreados das folhas que se sobrepõem à transparência da luz e do meu olhar.

Espreito para cima. E por mais vezes que espreite, feche os olhos e volte a olhar, a minha expressão é de puro deslumbramento. Os seus ramos folhosos são como a roda da saia de uma mãe. Têm o superpoder de nos tornar invisíveis, onde nenhum outro olhar magoa. Um manto onde o coração se aninha e adormece. Um lugar de colo, sagrado coração. E se chegamos magoados, de coração quebrado, a Tília limpa. Sustenta cachos de corações pendurados apontando a direção que a tristeza precisa de seguir. A direção do chão, onde lágrimas e folhas secas se reúnem para cantar, pela última vez. E se chegamos despedaçados, com o coração aos bocados, a Tília sutura, com fios de bênçãos, no doce balanço da sua abundância. E se chegamos com alegria, euforia, inquietude, serenidade, vem sempre, e sempre, ao nosso encontro, sorrindo, festejando, escutando, ficando. 

Milhares de folhas formam a sua saia, vestida sem esforço e sem queixumes. Com a leveza do linho e do algodão, mas com o suporte e a coragem do burel. Sem esforço. Gostava de aprender contigo, mãe Tília, a não fazer nada que saia fora do alcance do abraço e do respeito. Gostava de aprender contigo, mãe Tília, que tudo o que não seja feito em reverência, connosco e com todos aqueles que cruzam o nosso caminho, precisamos de despir. Que a escolha de vestir e transportar ao peito o que quer seja, seja sempre feita num movimento enamorado. Que nenhum vínculo seja fardo ou sacrifício. Que todo o vínculo possa ser dádiva. Com todos aqueles que habitam a paisagem e a ecologia que nos recebe.

A sombra da Tília toca-me através da tranquilidade que lhe tão singular. De tão suave que é, chega a fazer cócegas quando queremos poder voltar a brincar. De tão robusta que é, chega a levar às cavalitas quando aquilo que mais precisamos é de colapsar nos seus ombros. O seu florescimento “tardio” diz-nos que ainda é tempo e que ainda há tempo. Tempo para ser e para existir. Tempo para olhar nos olhos e agradecer. Tempo para agir e para ficar em silêncio. Sem pressa. O seu crescimento “lento” diz-nos que tudo o que feito com amor, é compassado e respira ao ritmo do coração. Só crescendo devagarinho se cresce sustentado. Só nos aproximando devagarinho, da paisagem, podemos escolher em liberdade. Sem pressa.

Hoje escrevo, enfim, como se dançasse descalça e sem coreografia. Movimentos livres, imperfeitos, desgarrados e certeiros. Como uma mulher. É também Afrodite a Tília. A folhagem faz o vento baloiçar ao seu sabor. Os seus brincos-rainha caíram no fim do verão, o lugar e o porte ficam eternos. Os ramos expressam-se no baile e na carícia, o tronco vacila jamais. Lugar de perpétuo amor. O doce aroma que nos inebriou suporta-se na casca reta que se dá, mas que não dá de si. Deixa-se ir, mas não se deixa arrastar. Não se deixa trair. Tília mulher, que a escolha da dança e do abraço possa sempre amparada pela força do chão e da pertença. Tília mulher, que a bússola esteja sempre no peito e que a direção esteja sempre nos pés. E a transparência no olhar. Que nenhum vínculo seja captura ou dado como adquirido. Que todo o vínculo possa ser bênção. Com todos aqueles que habitam a paisagem e a ecologia que nos recebe.

Corações aos molhos, por causa de ti choram, brilham e bailam os nossos olhos.

Gostava de aprender contigo, mãe Tília, que tudo o que não seja feito em reverência, connosco e com todos aqueles que cruzam o nosso caminho, precisamos de despir. 

Ana Sevinate

Ana Sevinate

Psicóloga clínica e psicoterapeuta

Pós-graduada em psicossíntese e em cuidados paliativos. Membro do grupo de trabalho Ecopsicologia Portugal e co-fundadora do projeto Histórias de Raiz. Formadora no curso de doulas de fim da vida. 

Autora do livro Ser Terra: o abraço da Psicologia à natureza, publicado pela Chiado. Tecida por histórias, danças nas pontas dos pés, cores, papoilas aos molhos e folhas de tília.

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