Ecoespiritualidade

Coluna de Jorge Moreira

3 MIN DE LEITURA | Revista 37

 Polly Higgins

 – do ecocídio à ecocracia –

Eu amo esta terra, esta Terra. Eu amo as experiências maravilhosas que tive. (…) Eu amo os meus momentos agradáveis em que sou una com a natureza, tamanha é a beleza deste lugar. Experimentar em primeira mão o que é viver e se conectar com as pessoas e o planeta que se encontram em harmonia foi para mim a melhor festa de todas. Minha vida foi realmente rica. (…) Eu sei que pode não parecer ainda, mas estamos a plantar as sementes da grandeza para as incontáveis ​​gerações vindouras. Essa é a Grande Obra dos nossos tempos. Tua e minha.

Polly Higgins, 2014, numa carta premonitória[1]

Há ideias que podem transformar o mundo. Algumas são como faróis que iluminam aqueles que navegam à procura de um rumo melhor. Outras são como sementes, quando lançadas à terra, poderão levar algum tempo, mas acabarão por germinar. A democracia é uma dessas ideias. A sua origem perde-se nos tempos, com relatos de assembleias anteriores à Grécia antiga. Sem ser um sistema perfeito, ela evoluiu para vários modelos que expressam a vontade do coletivo contra tiranos e elites tenebrosas. A ideia original do ‘poder do povo’ continua a ser o farol das sociedades mais evoluídas, mas ainda permanece um mar por navegar até se encontrar a democracia na sua forma mais plena. Contudo, não podemos ficar por aí! Se quisermos justiça ambiental, sustentabilidade, emergência climática e ecológica, precisamos de um sistema político com uma ética alargada, capaz de dar a voz, não só às necessidades e qualidade de vida dos seres humanos, mas também à Natureza, seus elementos e ecossistemas.

Não vivemos sozinhos no planeta e essas vidas não humanas, para além de terem o direito à sua existência, persistência e de sustentar e regenerar os seus ciclos da vida, são importantes para nós, humanos, para colmatar as nossas próprias necessidades. Estou a referir-me a uma espécie de governança ecocrática, que incluísse os direitos da Natureza.

E, porque o direito é um conceito humano e somos a espécie com mais impactes negativos no planeta, cabe também a nós zelar e fazer valer esses direitos em nome das outras espécies e ecossistemas. Até que esta ideia ganhe força para se concretizar, podemos navegar à sua luz, procurando outras ideias que potencie a sua germinação futura. Nesse âmbito chamo aqui a possibilidade de colocar o ecocídio como um crime internacional contra a paz. O ecocídio é referente a um dano ecológico grave ou à destruição de um ou mais ecossistemas num determinado território causado pela ação humana. O termo começou a ser usado durante a guerra do Vietname, quando os Estados Unidos utilizaram tecnologias que impactaram gravemente o Ambiente, nomeadamente a utilização de herbicidas químicos para limpar as florestas, deixando que estas pudessem dar cobertura à tropas inimigas; e o uso de tecnologias de alteração do clima, para atolar os combatentes nas torrentes provocadas pelas chuvas[2]. Desde então e face à escalada dos problemas ambientais, a saudosa advogada escocesa Polly Higgins, demarcou-se na luta pela criminalização internacional do ecocídio.

Num certo dia, Higgins estava sentada numa sala no topo do tribunal Royal Courts of Justice, em Londres. Enquanto esperava pelo julgamento, a sua atenção voltava-se para o panorama que se avistava da janela. A sua mente vagueava entre os telhados das casas e as árvores que conseguia ver abaixo de si.

Quando olhou para o céu, ficou gelada com as imagens que se precipitaram na sua mente. Viu «vastas extensões de terra destruída, árvores dizimadas, rios envenenados, céus cheios de poluição»[3]. Naquele preciso momento, Higgins percebeu que não era só o seu cliente que tinha sido gravemente ferido e prejudicado, mas que a Terra estava também a passar pelo mesmo processo.

O pensamento seguinte foi como um chamamento que mudou a sua vida para sempre: «A Terra precisa de um bom advogado»[4]. Mas, como poderia representar a Terra em tribunal sem uma lei específica? Adivinhava-se um desafio tremendo para Higgins. Arregaçou as mangas, desistiu do seu trabalho bem pago e abraçou o desconhecido. Entretanto, as dificuldades eram muitas, mas a sua missão continuava inabalável. Polly não se conformava com a injustiça e os horrores infligidos à Terra pelas grandes multinacionais que não podiam ser detidas pela lei[5]. Com a perceção de que o mundo deveria ser movido pelo amor e não pela guerra contra a Natureza[6], vendeu a sua casa para financiar a campanha em nome de todos nós[7]. Elaborou projetos de lei para mostrar como seria o crime de ecocídio, defendeu e apresentou as suas propostas em reuniões internacionais, mesmo sentindo uma forte oposição pelos que detinham uma visão pequena da vida ou defendiam o (seu) status quo. Em 2011, Polly Higgins fundou a The Earth Community Trust para financiar o seu propósito[8]. Conjuntamente com Jojo Mehta, fundou, em 2017, a Stop Ecocide International, uma organização que procura desenvolver um suporte intersectorial para tornar o ecocídio um crime internacional[9]. Higgins passou a sua última década de vida dedicada a um só cliente: a Terra. Morreu pacificamente, com apenas 50 anos, no domingo de Páscoa, de 2019, um mês depois de ter sido diagnosticado um cancro no pulmão em estado avançado. «Seu calor, determinação e positividade permaneceram inalterados até o fim»[10].

 

A existência terrena de Polly Higgins teve uma profunda dimensão ecoespiritual. «Acredito em algo maior do que os humanos, mas acho difícil defini-lo»[11] disse ela na sua última obra. No meio da guerra que as corporações têm imposto à Natureza, ela colocava a paz no cerne da sua missão prática e espiritual:

(…) para mim, é também uma busca pela paz (…) acredito que podemos alcançar e criar um mundo de paz. (…) Uma sabedoria mais profunda aplica-se a todos nós: uma sabedoria que parte de uma premissa: “primeiro não fazer mal”. (…) Para mim, a minha procura encarna tudo o que estou a fazer para acabar com a era do ecocídio.

 

Esta prática de vida, alinhada com a sua dimensão interior, expõe o trabalho ecosófico de Higgins, em se ‘cultivar a si mesma’, qual Áskesis foucaultiana, que fornece a ‘tecnologia do eu’ capaz de libertar as condicionantes dos ‘circuitos culturais anteriores’ e possibilitar a criação de novos ‘espaços privilegiados’[12]. «Entrar num espaço privilegiado ou sagrado dá-nos a oportunidade de quebrar os velhos padrões [que produzem] dano, para que possamos finalmente deixá-los ir»[13]. Assim, Áskesis leva o mindfulness para um outro nível, o da autoconsciência e da intencionalidade de estabelecer novos padrões. Áskesis é para Higgins «um ato de governança espiritual» [14]. Tem como base o seu espaço sagrado, autocriado, onde se alinha com «um campo de energia maior», que a permite ascender a «um estado maior do ser» e também de responsabilidade[15]. Tudo isto reflete um ativismo no mundo que advém de um trabalho interior profundo.

Os valores que escolhemos para modelar o nosso estado interior de ser, tornam-se cada vez mais refletidos no nosso estado exterior de fazer. Quando há uma conexão entre o nosso ser e o fazer, fica mais fácil decidir o que é melhor no esquema maior das coisas. Já não nos percebemos como entidades separadas; o eu tornou-se parte de uma entidade muito maior. (…) Através da minha prática de Áskesis, decidi conscientemente explorar o meu estado de ser em harmonia com a Terra[16].

Este trabalho interior não se encontra alienado da realidade. É uma forma de perscrutar mais profundamente para entender uma realidade que normalmente nos escapa. Um trabalho interior que incide numa verdade maior, de que somos parte da Natureza. A destruição da Terra é a nossa destruição. «A Áskesis é na realidade uma prática da verdade»[17]. Polly Higgins deixou-nos uma pequena e simples fórmula de trabalhar a Áskesis, que pode facilmente ser praticada por todos: «Dê a si mesmo um espaço sagrado, mesmo que seja por apenas alguns minutos logo pela manhã quando acordar. Não há necessidade de sair da cama, apenas reserve um momento para se conectar com a Terra e entrar com a sua natureza interna»[18].

Uma das maiores aspirações de Polly Higgins era a inclusão do ecocídio como um crime reconhecido pelo Tribunal Penal Internacional. Para esse fim, ela e a sua equipa elaboraram várias propostas de emenda ao Estatuto de Roma para inclui o ecocídio. O seu legado continua vivo e inspirou milhares de políticos, ambientalistas, artistas e advogados, mas a ideia continua à espera de se concretizar. A ecocracia também. Mas, vamos continuar a sonhar e a lutar, tal como Higgins, para que isso seja a Grande Obra dos nossos tempos.

Referências Bibliográficas:

Foucault, M. (2006). A Hermenêutica do Sujeito. Martins Fontes.

Higgins, P. (2020). Dare You to be Great. FLINT.

Mcelwee, P. (2020). The Origins of Ecocide Revisiting the Ho Chi Minh Trail in the Vietnam War Environment & Society Portal. Environment & Society Portal, Arcadia, Spring(20). https://doi.org/https://doi.org/10.5282/rcc/9039

Monbiot, G. (2019). The destruction of the Earth is a crime. It should be prosecuted. The Guardian, 28 Mar. https://www.theguardian.com/commentisfree/2019/mar/28/destruction-earth-crime-polly-higgins-ecocide-george-monbiot

Stop Ecocide International. (n.d.). Retrieved September 15, 2022, from https://www.stopecocide.earth/who-we-are-

The Earth Community Trust. (n.d.). Retrieved September 15, 2022, from https://www.earthcommunitytrust.org/

[1]  (Higgins, 2020, Chapter I Know) | [2] (Mcelwee, 2020). | [3] (Higgins, 2020, Chapter First Steps). | [4] (ibid) | [5] (Higgins, 2020, Chapter What is Greatness?). | [6] (ibid) | [7] (Monbiot, 2019) | [8] (The Earth Community Trust, n.d.). | [9] (Stop Ecocide International, n.d.) | [10] (ibid) | [11] (Higgins, 2020, Chapter What is Greatness?) | [12] (Foucault, 2006; Higgins, 2020) | [13] (Higgins, 2020, Chapter Help Arrives). | [14] (ibid) | [15] (ibid) | [16] (ibid) | [17] (Foucault, 2006, p. 383) | [18] (Higgins, 2020, Chapter Help Arrives)

A ideia original do ‘poder do povo’ continua a ser o farol das sociedades mais evoluídas, mas ainda permanece um mar por navegar até se encontrar a democracia na sua forma mais plena. Contudo, não podemos ficar por aí!

Jorge Moreira

Jorge Moreira

Ambientalista e Investigador

Licenciado em Ciências do Ambiente, Minor em Conservação do Património Natural, mestre em Cidadania Ambiental e Participação, pela Universidade Aberta, e Doutorando em Sociologia pela Universidade de Coimbra. É bolseiro FCT e investigador do Centre for Functional Ecology, Science for People & the Planet da Universidade de Coimbra.
É vice-presidente da FAPAS - Associação Ambientalista para a Conservação da Biodiversidade; dirigente da Sociedade de Ética Ambiental, dos movimentos cívicos Alvorecer Florestal e Aliança pela Floresta Autóctone.
É autor de vários artigos dedicados ao ambiente e voluntário em inúmeras ações de defesa, conservação, promoção e recuperação do património natural.
Tem desenvolvido investigação nas áreas da Ética Ambiental, Educação Ambiental, Sustentabilidade, Alterações Climáticas, Ecologia Profunda e Ecologia Espiritual, onde tem realizado conferências e promovido os temas.

shakti@sapo.pt