Biografia dos dias sem princípio

Coluna de Inês peceguina

7  MIN DE LEITURA | Revista 38

Omniausência

Observo os estendais.

Estendal rés-do-chão

  • Duas t-shirts cinzento-azulado. Três pares de cuecas cinzentas-azuladas. Um par de calças de ganga. Quatro pares de meias cinzentas-azuladas. Um pano da loiça. A roupa é tipicamente masculina. A sequência é mais ou menos aleatória: t-shirt 1, meia, calças, meia, cuecas, t-shirt, meia, meia, pano da loiça, cuecas, cuecas, meia, meia, meia, meia. As meias são todas iguais. As cuecas são todas iguais. Tudo é mais ou menos da mesma cor. Nesta casa só vive uma pessoa. Adulto. Não parece preocupar-se em separar as cores. Ou deixou de se preocupar. As molas são de madeira. A roupa fica estendida três dias. Não deve sujar muita roupa. Talvez já não trabalhe. Ou trabalhe a partir de casa.

Estendal 1º andar, frente

  • Um fato de surf. Uma toalha de praia às riscas: amarelo, laranja, amarelo, laranja, amarelo outra vez. Três t-shirts com padrões coloridos. Um vestido esvoaçante, com bolinhas vermelhas. Dois pares de cuecas femininas, vermelhas, dois pares de cuecas masculinas, com riscas. Um par de calções de corrida. Um sutien de desporto. Outra toalha de praia, cor-de-rosa. Vivem aqui dois jovens adultos, praticam desporto. Gostam de ser vistos.

Estendal 1º andar, esquerdo

  • Três fardas de trabalho. Batas. Imaculadamente brancas. Três pares de meias. Imaculadamente brancas. Um casaco impermeável. Branco. Umas luvas de trabalho. Brancas. Uma camisa de dormir. Branca. Suponho que exista lixívia no armário dos detergentes. E que a mistura acidental de uma peça de roupa de cor fosse trágica. Suponho que seja preciso lavar à mão, às vezes. Que seja um casal adulto. A camisa de dormir é feminina, sem detalhes. Como uma t-shirt de algodão comprida. Ainda se abraçam, mas raramente se beijam, a não ser para dizer boa noite, ou quando um deles vai de viagem sem o outro, o que é muito raro.

Estendal 2º andar, esquerdo

  • Um tigre, um unicórnio, dois vestidos de criança. Dois pares de cuecas de criança maior, menino. Três panos da loiça. Um sutien de amamentação. Três fraldas de pano. Uma camisa masculina. Dois babetes. Aqui vive uma família em idade fértil. Têm três filhos. O mais velho é um rapaz. O mais pequeno ainda é bebé. O do meio talvez seja uma menina, por causa do unicórnio. O tigre já foi do primeiro filho. Falta-lhe um olho e perdeu cor e brilho no pelo. A camisa do pai, ou da mãe, tem manchas. Não há tempo para lavagens à mão. Este estendal muda às vezes três vezes por dia. A mãe ainda deve estar de licença de maternidade.

Observo as paragens de autocarro. De comboio.

Quatro pessoas com livro. Uma pessoa com livro com forro de tecido. Ninguém tem nada ver com o que ela está a ler. É privado. Duas pessoas com livros de auto-ajuda. Encontra o teu herói interior. Como ser um líder. A última pessoa do livro é estrangeira. Ou não é, mas é fluente em alemão. As outras pessoas todas, 23, estão com/ao telemóvel. Duas ouvem música sem phones. Para que todos sejam obrigados a saber dos seus gostos musicais duvidosos. 16 estão com phones. Três usam habilmente os dedos das duas mãos. Nasceram, o mais tardar, no ano 2000. Uma tem a letra do telemóvel aumentada. E não tirou o som das teclas. Outra ainda, tem uma capa de telemóvel cheia de cartões, uma nota de 5 euros, e um papel verde fluorescente, meticulosamente dobrado. Esperam sem sinais de pressa, 20. Duas estão claramente atrasadas. A última, ainda não se deitou, e vai direta para o trabalho. Maquilha-se rapidamente usando a câmara do telemóvel, e a seguir faz uma chamada vídeo em voz alta a uma amiga, para confirmar que não se notam nada as olheiras.

Os cestos e carrinhos de compras do supermercado.

Carrinho (a): 12 embalagens de leite meio gordo. 4 latas de grão/feijão. Fraldas/cuecas de noite, 12-15 Kg. Dois sumos de manga-laranja. Pão. Um detergente familiar que promete acabar com todo o tipo de sujidade. Manteiga. Duas embalagens de douradinhos de marca branca. Três embalagens de arroz. Massa cotovelos. Massa esparguete. Uma criança de 5 anos que ainda consegue sentar-se na frente do carrinho das compras e que risca os itens da lista de compras. Pede um chupa-chupa.

Carrinho (b): três garrafões de água. Uma posta de pescada e uma de peixe vermelho. Uma couve portuguesa. Batata doce amarela.

Cesto (a): Bananas. Uvas sem grainha. Nectarinas, duas ou três. Um sabonete líquido intimo.

Carrinho (c): Três garrafas de vinho verde. Um espumante. Balões. Batatas fritas. Uma tábua de queijos. Duas gelatinas zero açúcar. Uma embalagem de preservativos ultra finos. Ovos biológicos.

 

Os lugares habituais, as rotinas, as repetições do comportamento, são muitas vezes caminhos mais imediatos para a pessoa do que as palavras. Mostram o que está, o que existe. E mostram também, o que não está, o que não existe. As ausências, os vazios, o que não esteve, ou esteve pouco. Ou ainda o que está, sempre, mas num estar que é apenas de quantificação. De número. A ausência de ordem nos estendais, até certo ponto, pode mostrar tranquilidade. A ausência de ordem nos estendais, a partir de um certo ponto, pode mostrar abandono. O alinhamento, a seleção, a sequência, pode mostrar um super-ego que não dá tréguas. O que poderia acontecer se uma das molas fosse de cor diferente? Se os pares de meias se desencontrassem? Se a nódoa não saísse?

A presença quase absoluta do telemóvel, nas paragens de autocarro, mas também nos outros lugares todos onde estamos, pode denunciar a ausência de presença quase total. O tempo todo que não conseguimos gerir a dúvida. A espera. O silêncio. O encontro com o que é novo, estranho, que não se sabe prever. A era digital abriu a porta ao mundo, encurtando distâncias, e escavou um abismo infinito entre pessoas. As que não se conhecem. As que se conhecem. Ou as que pensam que (ainda) se conhecem. Um abismo infinito entre a pessoa e ela própria. Povoado de acontecimentos, imagens, movimentos, distrações. Repetições. Rituais de sobrevivência a mais um dia. A ilusão do controlo. A percepção da escolha. A fantasia da ausência de impossíveis.

Os cestos ou carrinhos de compras são a triagem da semana, do dia. Da próxima noite. O que não se pode comprar. A presença ou ausência de companhia às refeições. O limite financeiro. A preocupação ou ausência dela sobre o ambiente. A possibilidade para se preocupar com o ambiente. Não é sempre uma escolha. Não é sempre sustentável no momento em que se abre a carteira. A triagem. O mimo ou o excesso. O prazer imediato e fugaz. Ou a espera. Com marca ou de marca nenhuma.

O que é que gostaria de poder estender no seu estendal? O que é que já não estende? O que é que nunca estendeu? Quantas pessoas olham olhos nos olhos nas paragens de autocarro ou de comboio? Na rua, no café? Na mesa de jantar, em casa, ao jantar? No regresso, na partida. Quantas se abraçam demoradamente? O que é que nunca poderia estar no cesto das compras? Porquê? E o que está sempre? Poderia não estar? O que aconteceria se não estivesse?

E as pessoas das nossas vidas? Quais são as pessoas que estão – mesmo – presentes? Sem acessórios. Sem artifícios. Sem interfaces não humanos. Quantas estão fisicamente presentes? Só. Presenças omniausentes. Quantas estiveram sempre ou quase sempre, mesmo antes dos telemóveis, nessa dimensão de presença ausente. A assegurar a sobrevivência básica. Quase tempo nenhum de sobra para outra coisa, além do básico. Qual é, foi, será, o significado dessa ausência? O peso? Até onde deixou dentro da pessoa um lugar vazio?

Quantas vezes, nisto da pessoa, e da sua mente, a expressão de um sentir, é exactamente a denúncia do seu contrário? Do que faltou? E como será, como seria, como pode ser, quando o que não está no estendal, na espera por alguma coisa, no cesto das compras, não puder nunca ser trazido, sentido, experimentado.

Será possível superar absolutamente essa omniausência? Se uma criança nunca ou raramente se sentir vista e ouvida, e respeitada nas suas necessidades básicas, que incluem o afeto, a atenção, o amor, os limites, a contenção, será capaz de expressar afeto, de senti-lo, de dá-lo de forma saudável, em vez de dar tudo, ou não dar nada? Conseguirá respeitar, confiar, deixar-se cair de costas? Conseguirá gerir sozinha, um dia, os seus desejos e apetites? Separar as cores, ou comprar quase tudo da mesma cor para não ter de se preocupar com contágios de tintas? Conseguirá, na omniausência de tempo sem pressa, ter um dia a calma e a despreocupação de não se ocupar com mais nada, que não seja preciso, não em todos os momentos? Saberá aborrecer-se e tratar com gentileza o tédio? Se o seu tempo for todo meticulosamente ocupado com tarefas, planos, actividades, manuais, objetivos, tempos organizados, estruturados, previamente pagos e determinados em duração e quantidade mínima e máxima de outras crianças que co-habitam esse espaço-tempo? Ou se o seu tempo não puder ser ocupado com nada disso, mas em vez disso, porque isso tudo não está ao alcance de todos os estendais ou de todos os carrinhos de compra, existir um computador, um computador chega. Com quem passa a maior parte do seu tempo. Como será depois, na espera? Nas esperas.

Como seriam os seus movimentos do corpo, das mãos? Como seriam os nossos movimentos de corpo, de mãos, de olhos, de olhares, na ausência de tudo o que enfiamos entre nós e os outros, entre nós e nós próprios?

Observo os estendais outra vez.

Chove.

Estendal 1º andar, esquerdo

  • Uma camisa de dormir. Branca. Dois lençóis, brancos. Um plástico cobre o estendal. A roupa assim não seca. Mas também não se molha. Há dois meses que não há batas no estendal. Sempre a mesma camisa de dormir. Camisa de noite. Talvez se tenha reformado. Ou se calhar morreu. Sim, creio que tenha morrido. Vejo a mulher a estender a roupa. A camisa de dormir manchada. O detergente com lixívia gentil não acabou. O homem morreu. A mulher estende a camisa, e uma fronha de almofada. Tem os olhos quase fechados. No último dia deu-lhe um beijo antes de dormir. Se soubesse que era a última noite, e que durante a noite partiria em viagem, solitária, talvez lhe tivesse dado outro. Nunca foi um homem de muitas palavras. Meias palavras. Uma vida inteira de presença omniausente.

Observo a rua.

Um cão que passeia o dono. Mecânico. O lugar do cocó. O saco. O gesto. O silêncio. Tosse. O cão observa-o. O dono não o observa. Puxa a trela para seguirem. Os dois. Cada um no seu caminho solitário. Um a ter esperança. O outro, não.

O que é que gostaria de poder estender no seu estendal? O que é que já não estende? O que é que nunca estendeu? Quantas pessoas olham olhos nos olhos nas paragens de autocarro ou de comboio? Na rua, no café?

Inês Peceguina

Inês Peceguina

PhD em Psicologia do Desenvolvimento e Pós-Doutoramento em Psicologia da Educação

Pessoa que se intriga.
Investigadora no Centro de Estudos e Pesquisa, da Operação Nariz Vermelho.
Com deambulações pelos territórios da Psicologia e da Educação.
Quase 12 anos de experiência no papel de mãe, a cometer os erros clássicos e mais alguns.
Pessoa que se encontra na escrita e que às vezes na escrita encontra o outro.
Bailarina de fim-de-dia e atleta de nascer do sol.