Onde mora o coração, histórias e paisagens

Coluna de Ana Sevinate

3 MIN DE LEITURA | Revista 38

Ode à Sereia

– uma homenagem a cada ser vivo levado pelo fogo –

Há uma pergunta que por estes dias vai navegando pelo meu olhar. Quando o coração se parte e o luto nos habita, que história se escreve e se inscreve na nossa pele? Como uma tatuagem. E desta pergunta vão escorrendo outras, tal como as primeiras gotas de chuva quando se lançam corajosamente no vidro da janela, uma depois da outra, ecoando, uma a uma, o fim de uma viagem. Anunciando, uma depois da outra, a sua força migratória em direção ao chão e aos segredos da terra.

A sua força fluida em direção às águas, lençóis que envolvem a angústia e as escamas. Fazem estremecer a rotina dos dias e trepidar as mais inabaláveis certezas. Gentilmente e brutalmente, uma a uma. São gotas que apagam a agonia do fogo e são lágrimas que lavam o que foi ferido por amor.

E quando o corpo da terra arde e se afoga no desespero, plim, outra pergunta se lança na janela da minha alma. Alma portuguesa, mais do que nunca, esculpida pelo sal do mar, cantada pela prece da guitarra, coberta pela lã serrana, abençoada pelas avelãs e bolotas do bosque, benzida pelo azeite da planície, ancorada pela pedra-altar. O que nos resta senão chorar? O que nos resta senão evocar as lágrimas que a anestesia congelou? Desenlear a bravura que a rede pescou. Pendurar à cintura as conchas que a espuma escondeu e a praia abraçou. E para isso é preciso, mais do que nunca, sermos sereia, mulher-peixe que tatua no peito um conto e um canto diferentes daqueles que o luto lavou. Mulher que tem o corpo no mar e o coração na terra. Artérias feitas de corais, veias feitas de raízes. Soltando as tranças do cabelo para que a tristeza e a raiva possam encher a maré e encharcar o chão queimado.

E quando as lágrimas e a esperança insistirem em secar de mãos dadas com a erva, plim, outra pergunta, outra gota de água, aquela que finalmente transborda e traz a fúria das ondas. Que história é tão difícil de voltar a sonhar? Aquela que só o pranto pode escrever, inscrever e tatuar? É a história da sereia, que não se deixa apanhar, que não se deixa iludir, que rompe vícios e padrões com gritos feitos de oração. Aquela que não quer saber se é chamada de monstro e que se ri de quem dela têm medo. Aquela que sabe que ser feiticeira é dádiva e não maldição.

Só a dor é que te pode salvar sereia. Por isso tatua-a e deslaça as lágrimas. Regenera o coração, o chão e a história. Destrói no remoinho a crença de que o corpo, o teu e a terra, pertencem a alguém. Recupera, das cinzas, a história onde o corpo, o teu e o da terra, são sagrados. E quando as lágrimas e a esperança insistirem em morrer de mãos dadas com o chilrear dos pássaros, banha-te na memória fresca de quem um dia já foste. Benze-te na fonte que é origem e escapa pela foz que é liberdade. Sereia, que cada uma das tuas lágrimas possa ser torrente, enchente, corrente, cascata e gota de água. Que dos búzios se possam ouvir os prantos, os gritos, os cantos e os encantos, os teus e os da terra.

E, assim, por cada gota de água que se sacrifica no vidro da janela e nas folhas que não arderam, lembremo-nos que é na rotina dos dias que abalamos as certezas. Em cada encontro e em cada relação, lembremo-nos que a invasão, o domínio, a posse e a impunidade não têm lugar, nem no coração da terra nem no coração da sereia.

Descongelemos as lágrimas e soltemos os gritos de cada vez que acharmos que invadir o chão, do corpo e da terra, é admissível. Por mais disfarçada de desejo que a invasão possa ser. E por mais que o medo de perder possa querer consentir. Sereia, sê sentinela dos movimentos da tua barbatana e sê farol dos gestos de todos nós. Pois só o luto do que foi e que já não é, sereia, pode voltar a fazer correr o sangue nas nossas artérias e a seiva nas nossas raízes. Só o luto do que já não pode voltar a ser, por ter ardido ou por ser ultrajante, pode partir uma história e parir outra. Que em coro, contigo sereia, possamos oferecer à terra as águas do parto, do sangue, da seiva e do pranto.

Só a dor é que te pode salvar sereia. Por isso tatua-a e deslaça as lágrimas. Regenera o coração, o chão e a história. Destrói no remoinho a crença de que o corpo, o teu e a terra, pertencem a alguém. Recupera, das cinzas, a história onde o corpo, o teu e o da terra, são sagrados.

Ana Sevinate

Ana Sevinate

Psicóloga clínica e psicoterapeuta

Pós-graduada em psicossíntese e em cuidados paliativos. Membro do grupo de trabalho Ecopsicologia Portugal e co-fundadora do projeto Histórias de Raiz. Formadora no curso de doulas de fim da vida. 

Autora do livro Ser Terra: o abraço da Psicologia à natureza, publicado pela Chiado. Tecida por histórias, danças nas pontas dos pés, cores, papoilas aos molhos e folhas de tília.

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