Mil-em-Rama

Coluna de maristela barenco

3 MIN DE LEITURA | Revista 38

A Escuridão que Ilumina a Vida

No clássico filme de Akira Kurosawa, chamado Sonhos, de 1990, há um episódio, de nome Povoado dos Moinhos, em que um homem visita uma aldeia de moinhos e conversa com um dos moradores mais antigos. Na cena, o visitante se espanta ao saber que eles vivem sem eletricidade, com lamparina e óleo de linhaça. Quando pergunta ao idoso como isso é possível, ele prontamente responde: “Não precisamos de eletricidade”. Ele diz que as pessoas se acostumam ao que é conveniente e se esquecem do que realmente é bom.

O visitante, então, refere-se à noite, como um problema, já que ela é muito escura. E o idoso responde, com espanto, que as noites são escuras e que assim é a sua natureza, e que é maravilhoso que as noites sejam escuras, porque os dias já são claros.

Trazendo para a dimensão existencial, o analista junguiano brasileiro, Roberto Gambini, deu uma entrevista, há muitos anos, para a Revista Bons Fluidos, em que diz que “o grande símbolo inicial da nossa cultura é dominar o fogo, saber acendê-lo de novo quando ele se apaga. Controlar a escuridão.” Ele chama a nossa cultura, de cultura da iluminação, da claridade. Ele acredita que todo o progresso da cultura e da tecnologia é resultado das explorações dessa escuridão interna.

Certo é que há quase dois séculos a humanidade conheceu a lâmpada incandescente e, de lá, pra cá, mergulhamos no paradigma da iluminação, de tal forma, que a escuridão – em todos os seus sentidos -, passou a ser evitada e até temida. Ela se tornou sinônimo de atraso. Assim como o silêncio. Perdemos a compreensão da dimensão de polaridade da existência. Entendemos que, se há luz, não precisa mais haver escuridão.

Roberto Gambini diz que “o excesso de luz urbana faz muito mal para a nossa alma, porque roubou e deformou a noite. De dia é certo que seja lógico, racional, produtivo. Mas, quando o sol se esconde, o tempo deveria ser dedicado a contar histórias, entregar-se à imaginação, filosofar, fazer as coisas que durante o dia atrapalham a eficiência. Temos luz 24 horas por dia e amputamos o lado mais sutil, naturalmente proporcionado pela noite.” – completa.

Queremos uma vida ativa às custas de uma vida contemplativa, como diz o filósofo Byung-Chul Han. E por isso perdemos o sentido da própria existência a depressa, e a depressão desponta como um dos grandes males deste século.

Para Gambini, “o grande desafio do ser humano, em todas as épocas, é conhecer o seu próprio escuro”. “São nos momentos de escuro da alma que acontecem as transformações”. Para ele, “a depressão é o escuro que mais dá medo”. No entanto, ele adverte: “A gente sabe, depois de 100 anos de psicanálise, que a única cura possível é entrar nesse buraco, pois lá dentro existe uma vida que não foi vivida”.

Ainda que, para Gambini, a nossa cultura não forneça imagens que nos ajudem a querer ir para o escuro, precisamos, mais do que nunca, restabelecemos esta relação.

Sempre motivo às pessoas que têm filhos pequenos a irem introduzindo estas práticas. A garotada ama o fogo e a luz das velas, porque isso é ancestral em nós. Somos feitos desta matéria. Em torno de um fogo, os olhos das crianças brilham, reluzentes. Se não é possível o fogo, podemos escolher lâmpadas indiretas, amareladas, avermelhadas. O nosso corpo relaxa e sorri. Isso, associado a um bom banho, uma xícara de chá de camomila, e não há insônia e insanidade que perdure.

Terminemos a coluna deste mês com a docilidade de Mia Couto, em seus Contos do Nascer da Terra. Ele diz:

“Precisamos da presença de outra luz. (…) Não é da luz do Sol que carecemos. Milenarmente, esta grande estrela dominou a Terra e nós pouco aprendemos a ver. O mundo necessita ser visto por outra luz, a luz do Luar, esta claridade que cai com respeito e delicadeza. Só o luar revela o lado feminino dos seres… Só o luar revela a intimidade de nossa morada terrestre… Necessitamos não do nascer do Sol. Carecemos, sim, do crescer da Lua (…)”. A escuridão… que ela possa ser bem-vinda, esta preciosa matéria-prima, capaz de reconectar o humano e respeitar o ambiente.”

No entanto, ele adverte: “A gente sabe, depois de 100 anos de psicanálise, que a única cura possível é entrar nesse buraco, pois lá dentro existe uma vida que não foi vivida”.

Maristela Barenco Corrêa de Mello

Maristela Barenco Corrêa de Mello

Psicóloga e Doutorada em Ciências Ambientais

Formada em psicologia, com doutorado em ciências ambientais, estuda subjetividade, é professora universitária, idealizadora do Canal de Podcast Mil-em-Rama e participante do projeto Conversas do Além-Mar.

Professora do Departamento de Ciências Humanas do INFES - UFF
Professora do Programa de Pós-Graduação em Ensino - PPGEn-UFF
Professora Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente - PPGMA-UFF

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