artigo de sofia batalha
Mudança de percepção sobre o nosso lugar na teia das coisas
Parte III – Continuação do artigo da Revista 35
7 MIN DE LEITURA | Revista 37
Um dos enormes desafios modernos é trabalhar segundo o pensamento binário, hierárquico e absolutista. O redutor pensamento binário faz-nos ignorar a delicada e subtil energia selvagem e paradoxal, sendo tão certa como errada. O absolutismo exige uma (não duas, apenas uma) resposta final absoluta, tendo muita dificuldade em trabalhar com a impermanência, a ambiguidade ou os paradoxos. Depois temos o insidioso pensamento hierárquico presente em muitos modelos e métodos, como a ideia da escada da consciência, em que à medida que maturamos, subimos e evoluímos.
Desta lógica linear conclui-se naturalmente que há consciências mais e menos evoluídas, quer dizer que se estiver num estado específico de maturação da individuação, sou mais evoluído que o outro e posso olhá-lo cima, seja planta, animal ou pessoa.
Isto é muito perigoso num pluriverso sistémico feito de espontâneas, eternas e porosas transições cíclicas. Com esta lente limitada perdemos imensa informação, sabedoria e possibilidades de diálogo. Um dos ensinamentos profundos dos lugares está tudo bem até que deixa de estar e quando nos limitamos a uma ideia de identidade fixa exilamos o poder inato de transformação e metamorfose. Estas transgressões de consciência são como respirar, expandindo e contraindo, em processos orgânicos, vivos e profundamente relacionais.
As três almas
O binarismo absolutista e hierárquico previne ou evita que nos relacionemos integralmente com as coisas. É a sabedoria do coração que nos ajuda a acolher diferentes perspectivas, em toda a sua diversidade e impermanência. O coração é o sítio onde a alma habita. A alma é tão delicada, gentil e potente, porque fala da nossa singularidade.
Há perspetivas indígenas, com culturas contextuais com cosmologias e metafísicas diferentes da nossa, que falam da alma não como uma “coisa”, mas enquanto verbo e diálogo, o que é interessante, pois dá-nos outras pistas.
Estas são culturas que habitam na mesma paisagem há milhares de anos, caminhando literalmente sobre os ossos dos seus antepassados. Numa perspetiva relacional é empoderador todas as histórias povoarem no lugar de pertença radical, pois uma das almas em diálogo e relação que nos habita pertence ao lugar de onde nascemos e crescemos. A paisagem que nutre as memórias mais antigas desses lugares familiares. Segundo esta perspectiva temos a alma da identidade – não é o mesmo conceito de identidade individual que o isolado e perigoso sentido ocidental nos ensina. Mas uma identidade contextual, sempre em relação nunca é isolada. A identidade dinâmica e responsiva que traz os talentos e potencialidades, o serviço e missão, e os propósitos de vida. Pois, os propósitos ao longo da vida são vários e dinâmicos, muito mais ricos e verdadeiros que apenas um propósito. Todos o sabemos porque já passamos por metamorfoses, que faz parte de todo o processo de redescoberta. Temos a alma que pertence às estrelas que é irrepetível e que volta ao centro do universo cada vez que o nosso corpo orgânico morre. Estas três almas em conjunto compõem-nos, a do lugar, do coração e das estrelas. A memória do lugar, a sua frequência e estrutura, os nossos dons, talentos, potencialidades, serviços e a singularidade das estrelas e tudo isto habita também no nosso coração.
Uma enorme diferença entre a sabedoria intuitiva do coração e o conhecimento da mente é que é não dual, mas fractal. O nosso coração entende, vibra, sente, percebe o todo a todo o momento, daí ser essencial voltarmos a conectar ao coração, útero e ao intestino, pois de outra forma estamos isolados, exilados e mutilado da inter-relação profunda.
Hymma
É um termo sufi que significa literalmente o poder criativo do coração, ligado à imaginação. Ao imaginar, estando presente no corpo e abrindo espaço criativo para a intuição e espontaneidade é o que acontece quando sentimos e não a tentar compreender algo, a tirar conclusões objetivas ou racionais. Conseguimos fazer isto num passeio na floresta, se trabalharmos na área corremos o risco de olhar para as coisas de um ponto de vista exclusivamente de ordenação, nomeação e catalogação, perpetuando a separação da conexão ao coração. No entanto, ambas as visões não são mutuamente exclusivas, pois podem coexistir na mesma pessoa. A espontaneidade é fundamental porque é o que emerge a cada momento e onde não conseguimos chegar racionalmente, e é uma sabedoria delicada que fica facilmente emudecida, invisível ou calada. É extremamente subtil, mas algo que todos temos, a sagrada capacidade de penetrar profundamente na vida de sentir para além do visível, tocando no núcleo das coisas.
A Mente Tridimensional
Quero trazer-vos a ideia da tridimensionalidade da mente, congruente com a tridimensionalidade dos três centros essenciais de percepção sobre o mundo e a realidade, instestino/útero, coração e cérebro. Então, na mente, há três camadas: o consciente, o subconsciente e o inconsciente. Já falámos um bocadinho do inconsciente, a nossa paisagem mais selvagem onde tudo pode acontecer, um universo bem profundo, mas também é onde ocorrem as verdadeiras metamorfoses, tomadas de consciência.
O inconsciente é extremamente radical e, porque fala da raiz, está ligado ao intestino/instinto.
Acontece que, hoje em dia, confundimos entender e perceber com julgar ou catalogar, torna-se difícil de discernir. Quando estamos em julgamento objetificamos algo ou alguém. Lembro que objetivar é tirar do contexto, exilando as histórias, as camadas e porosidade híbrida. A objectificação e o julgamento, podem bloquear as outras sabedorias, no seu processo linear de quantificação, lógica factual, organização e catalogação. Sejam ideias, conceitos ou experiencias. Somos viciados em significados para podermos arrumar tudo em prateleiras. Por exemplo, no nosso processo podemos encontrar informação que nos diz que o ego é mau, muito mau! Porque o ego tal como é construido, vivido e valorizado na cultura moderna (hiper-individualista e super-consumista), é tido como uma ferramenta de isolamento exponencial e separação. Mas o ego não é só mau, pois é a nossa forma de funcionar no mundo tendo também um lado muito prático. A questão surge quando confundimos identidade com o ego. Mas felizmente todos somos muito mais do que o ego julga que é.
Então precisamos (somos) sempre da rede, reclamamos a integração da realidade visceral de inter-relação constante. Refiro-me à perspectiva animista quando digo que não somos os únicos a trazer sonhos e significados ao mundo, pois nesta perspectiva tudo está vivo e tudo contribui para tudo, dinamicamente e porosamente, numa complexa interligação de sistemas vivos. Esta ideia de isolamento está ligada a uma ideia de sucesso de produção de produtividade de ser, de fazer, de ir, de concretizar, de cumprir, e muitas vezes é exasperante o tanto que julgamos que temos que fazer em sozinhos. Na verdade, como nada existe em isolamento há um segredo da natureza que diz que não temos que fazer nada sozinhos, é claro que temos de ter um papel ativo, mas nada se faz sozinho.
Sentimos a integração e relação na natureza, em lugares de reciprocidade profunda. É um convite a que a nossa mente racional não cale as profundezas da alma e é mesmo importante que tenhamos esta dignidade e a coragem de seguir, fazer ou ser para além desta mente racional mesmo (e especialmente quando) se mete no caminho do que a mente acredita que está certo ou que deve ser feito.
Às vezes é mesmo necessário escolher o lado é errado da encruzilhada, transgredir e ir no sentido oposto, pois de outra forma não encontramos a linha, o propósito ou a melodia da alma. Para umas pessoas isto é fácil de fazer, enquanto para outras é bem mais difícil. Mas não é uma corrida e não há prémios no final. Não tem um fim em si próprio, o objetivo final é sempre a vida e a reverência é a própria vida.
O processo de relativização da mente é um processo vivencial e de vida, é algo que pela cultura e contexto onde nos encontramos temos que estar constantemente a relembrar. Somos mais que isto, somos muito mais valiosos, profundos e válidos. Outra das coisas que uma mente em isolamento perpetua na sua linguagem é a sua falta de valor intrínseco. No caminho linear da objectividade perdemos muitos fios de contexto, rede, identidade e histórias, retirando o valor e soberania intrínsecos a tudo e mais alguma coisa. Hoje em dia somos válidos porquê? Apenas se provarmos que somos válidos, pois de outra forma ficamos automaticamente invisíveis. Somos válidos se fizermos algo notável, se produzirmos e concretizarmos a todo o momento. Porque senão não temos valor! É trágico porque desta forma não respeitamos de todo a delicadeza da sabedoria, a potência do real valor intrínseco que somos apenas por estarmos aqui, em relação, em presença, apenas por ouvirmos, sentirmos ou imaginarmos.
Então o meu convite é relativizarmos a mente para voltarmos a ouvir o coração, o útero, o intestino, para voltarmos a ouvir os espaços que nos circundam, os lugares e as paisagens.
Conversar com os lugares
Então como se conversa com o lugar? Como se faz? Em que língua falam os lugares e o que dizem?
Conversar ou abrir este espaço sagrado de diálogo recíproco com entidades muito maiores do que nós – as que nos sopram vida e que nos abraçam a cada momento – é que não somos nós quem controla a conversa. Não é um diálogo extrativista, de onde extraímos respostas certas ou erradas para uso pessoal. É uma conversa em reverência. Não há respostas objetivas, mas histórias, sensações e um compromisso não hierárquico e visceral na relação. E conhecemos profundamente esta língua e a sua gramática, apesar de não ser verbal. É a linguagem da alma, dos sonhos, das metáforas e símbolos. Não conseguimos pesar, medir ou saber qual a composição química de uma metáfora, mas isso não as torna menos reais, principalmente nas portas que nos abrem. Precisamos de cultivar esta relação com tempo e paciência.
Mapeamento sonoro
Convido a que façam um registo, um mapeamento, sonoro do lugar onde se encontram. Com o telemóvel conseguimos gravar alguns dos sons à nossa volta. Onde estás agora? Pode não ser o lugar preferido, ou o que fale mais contigo, pode não ser um lugar que abra ou nutra profundamente, mas é o lugar onde estás. Então dignifica-o ouvindo-o. Não ouças apenas com a cabeça, pode até ajudar fechar os olhos para que o processo não seja apenas controlado por aquilo que vemos. Novamente quero aquietar as nossas mentes e falar diretamente ao coração: há certo e não há errado. Não há erro aqui, não há testes. Apenas permitir que a experiência e sensação se desdobre. Destapando a riqueza que está presente à nossa volta, em qualquer sítio em que estejamos.
Dar voz e espaço para contar uma história de algum lugar que te tenha arrebatado, nutrido, acompanhado, aconchegado ou desafiado. Algum lugar que carregues em ti nas tuas memórias e identidade.
Deixo a sugestão de apenas receber a energia telúrica do lugar. Energia sagrada que emana da terra de cada lugar em particular e de todos em conjunto. É tão valioso esse reconhecimento dessa energia que puxa, porque é uma identificação profunda, não é linear ou só boa, ou só feliz, porque as coisas são muito mais ricas do que só felicidade não é?
É trágico porque desta forma não respeitamos de todo a delicadeza da sabedoria, a potência do real valor intrínseco que somos apenas por estarmos aqui, em relação, em presença, apenas por ouvirmos, sentirmos ou imaginarmos.
Sofia Batalha
Fundadora e Editora da Revista
Mamífera, autora, mulher-mãe, tecelã de perguntas e desmanteladora o capitalismo-global-colonial-tecnológico um dia de cada vez. Desajeitada poetiza de prosas, sem conhecimentos gramaticais. Peregrina pelas paisagens interiores e exteriores, recordando práticas antigas terrestres, em presença radical, escuta activa, ecopsicologia, arte, êxtase, e escrita.
Honor hystera. Re-member. Response-ability. (un)Learn together.
Autora de nove livros e editora da revista online Vento e Água, Comadre conversadeira no podcast Re-membrar os Ossos e em Conversas D'Além Mar. Instagram, Serpentedalua.com, Sofiabatalha.com
Nova (des)Formação
Resgatar a Percepção Selvagem – Começamos em Setembro.