Onde mora o coração, histórias e paisagens

Coluna de Ana Sevinate

2 MIN DE LEITURA | Revista 36

Hoje o tempo parou

Hoje o tempo parou. Ficou primeiro suspenso e, depois, lentamente demorado. E então a alma respirou. E foi neste tempo sem tempo, que a alma encontrou o seu lugar. Onde se deitou e se aninhou. Onde dormiam os sonhos primeiros, campos de papoilas onde a linguagem das feridas já há muito foi esquecida. Hoje o tempo parou e tudo parou de doer. Porque não faltava nada. Porque tudo existia, mas sem magoar. Há instantes assim. Balões de ar e chama acesa onde tudo se veste e reveste de sentido. 

A raiz que nos agarra e que nos conduz nos territórios da dor é a própria beleza que a vida entoa. É a beleza que vive na paisagem e é a beleza que vive também no olhar do outro que toca o nosso. E é então no lugar da alma que se dá também o encontro, muito para além das histórias já mastigadas. No olhar livre. Sem esperas, que se desvanecem assim que se torna possível o sustento da raiz e a ligeireza do ar. No olhar consequente e consciente da liberdade do outro. Sem posse, que se desvanece assim que escolhemos antes a graça e a alquimia profunda do olhar. 

Hoje o tempo parou porque o vazio é só vazio e não é já um lugar por preencher. Passou a ser um lugar onde chegar e de onde partir e onde chegar. A tragédia das relações é ficarmos presos ao que nunca veio e que nunca virá. A reparação implica recuperar o direito próprio, e do outro, de ir e vir em liberdade. E implica defender o direito próprio, e do outro, à existência.

A dádiva da relação é a sua maturidade. Também o fruto maduro se deu tempo no aconchego da sombra, no beijo do sol e no embalo da árvore e, tal como o fruto maduro, a relação suspira por um tempo para lá do tempo, sem quimeras e sem os moinhos de vento de outrora. No risco e na incerteza do que pode verdadeiramente vir a ser. Muito para além do golpe da rejeição e do corte do abandono. Separa-se, por fim, o trigo do joio.

Hoje o tempo parou porque o silêncio do fim da tarde deu lugar ao lugar da alma. E no lugar da alma, o coração partido já não é tão pouco uma memória. É desfiladeiro distante, cujo eco não se ouve mais. Na relação madura ouve-se o bater dos corações, recolhendo e acolhendo, recolhendo e acolhendo, recolhendo e acolhendo. Tal como o pulsar do solo no desmaio do verão.  

Muito para além da projeção, da fantasia e da história que não serve mais, existe o lugar da alma. E hoje o tempo parou porque todas elas caíram na terra quente: a projeção, a fantasia e a história que não serve mais. Fica o lugar, fica sempre o lugar. Fica o restolho. Fica a doçura do fruto e o suspiro do vento de agosto. O silêncio dá lugar ao fruto e sopra o que está por vir. Vagaroso, na maturidade necessária, a maturidade que suporta e ampara o não saber. Fica o friozinho na barriga e a profundidade do olhar. E o amanhã. Porque a possibilidade de um amanhã reinventado vive no lugar da alma. 

No terror que sentimos da incerteza, insistimos na repetição e na insistência da repetição perdemo-nos do lugar onde mora a alma, mas é no acolhimento daquilo que não tem ainda nome que respiramos. Na leveza do ar e na maturidade do fruto. E só no lugar da alma se respira a possibilidade de uma nova relação – comigo, contigo, com a paisagem, com o chão, com a história e, com certeza, com o amanhã.

Fica a doçura do fruto e o suspiro do vento de agosto. O silêncio dá lugar ao fruto e sopra o que está por vir. Vagaroso, na maturidade necessária, a maturidade que suporta e ampara o não saber. Fica o friozinho na barriga e a profundidade do olhar. E o amanhã.

Ana Sevinate

Ana Sevinate

Psicóloga clínica e psicoterapeuta

Pós-graduada em psicossíntese e em cuidados paliativos. Membro do grupo de trabalho Ecopsicologia Portugal e co-fundadora do projeto Histórias de Raiz. Formadora no curso de doulas de fim da vida. 

Autora do livro Ser Terra: o abraço da Psicologia à natureza, publicado pela Chiado. Tecida por histórias, danças nas pontas dos pés, cores, papoilas aos molhos e folhas de tília.

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