O canto do verbo

Coluna de Ana Alpande

5 MIN DE LEITURA | Revista 37

Cuidado com a “Nova Terra”

 

O primeiro semestre deste ano chega com grandes provações climáticas, políticas e sociais.

Perante tudo o que estamos a assistir é normal fugir, dissociar, encontrar formas de adormecer a indignação e o medo do futuro. Acredito até que criar mitos e cultivar imagens como: uma nova terra, uma nova era ou a ascensão planetária como horizontes para lá do caos onde nos encontramos pode até mesmo ser vital, para podermos manter-nos presentes e participativos nesta dura realidade.

Agora, vivemos numa sociedade que deixou de saber ler mitos, tudo é literal tornando-nos escravos da linearidade. Abordar imagens míticas de forma literal é perigoso e pode até mesmo ter um efeito alienador.

Eu pertenço a um grupo de pessoas que desde os anos 60 (90 no meu caso), tem vindo a observar com muita preocupação a destruição dos ecossistemas do nosso planeta, assim como do tecido da nossa cultura. Entrei na primeira década deste milénio à procura de soluções. Na altura pautava a vida pelas minhas aspirações espirituais e fui encontrando grupos, muitos deles filhos de movimentos dos anos 80 que defendiam a ascensão planetária e o nascimento de uma nova era, a tal “ New Age”. Estes movimentos prometiam uma “Nova Terra” e nos éramos os personagens principais, aqueles que iriam através da sua vibração elevar o planeta a um novo plano de consciência. Seríamos nós e o nosso compromisso espiritual a parir um novo mundo como que pela magia de uma vibração mais elevada.

Olhando para o estado do planeta neste momento entendo que a urgência de fortalecer a imagem de uma “Nova Terra” se faça sentir de uma forma ainda mais premente que há 20 anos atrás, afinal de contas oferece esperança e sentido de propósito, alimentos essenciais para a psique humana.

Mas na verdade o que sobressai tantas vezes é esta ideia do mito do herói messiânico, uma cultura que se ergue acima das demais como a salvadora do mundo, aqueles que cumprem certos requisitos de virtude e pureza são salvos enquanto os demais não serão dignos de salvação. Uma visão profundamente limitada que não incorpora ou melhor que descaradamente ignora a tremenda responsabilidade política, humana, ecológica e social contida na premissa do previlegio.

Quando comecei a estudar a obra de James Hillman, dei-me conta que para ele a inocência era algo ofensivo, daquilo que pude entender, ele defendia que o culto da inocência, da pureza e virtuosidade, tem vindo a criar uma cultura infantil, de homens e mulheres incapazes de ver a totalidade do mundo, incapazes de criar uma linguagem estética que abrace a imensidão da existência e as próprias leis da vida/morte/vida.

Ultimamente entendo o que Hillman queria dizer, quando digo entendo, enfim… reduzo-me às capacidades de entendimento que tenho agora, sabendo que no futuro podem ser outras, ou seja, poderei acalentar outros olhares sobre a questão. Mas hoje, no tempo em que vivo, na dança cósmica que todos dançamos, eis o que penso sobre a “Nova Terra”:

Talvez se vivesse na África profunda, ou na Amazónia se fosse herdeira de uma cultura indígena cuja cosmologia e mitologia não tenham sido colonizadas, conseguisse enquadrar a dimensão mítica da imagem “Nova Terra” numa narrativa cosmológica inclusiva da totalidade e soberania da Terra enquanto identidade psíquica. Mas não pertenço a essas narrativas nem a essas cosmologias. Sou Europeia, vitima da colonização e órfã da sabedoria mítica dos meus ancestrais. Sou filha do colonialismo, corre-me nas veias o sangue da conquista e da desapropriação. Está é a verdade da minha cultura e simultaneamente a minha maior limitação.

As narrativas míticas actuais, muitas delas são apropriações de outras culturas, outros lugares que não os nossos. Sempre que me aproximo delas, corro o risco de as descontextualizar e ficar vítima dos grilhões inconscientes desta cultura da qual sou herdeira. Vivemos um sério problema de leitura e interpretação. A criação de significado ocorre num nível inconsciente e nesse mar não estamos sós, somos teia, fazemos parte de uma paisagem específica. De certa forma somos ao mesmo tempo crianças e adultos num ecossistema que precisa que estejamos presentes, atentos e enraizados, não só na realidade das nossas circunstancias, mas também nas limitações das mesmas. Eu sei…limitação é uma palavra nada popular nos tempos que correm.

Hoje em dia caminho com maior atenção às limitações impostas pela minha própria história. Talvez por isso o termo “Nova Terra” active os meus sinais de alarme.

As palavras criam e sustêm estruturas de significado que são ditadas pela própria cultura onde vivemos, quer queiramos, quer não.

Numa sociedade individualista como a nossa, afirmar que não és totalmente dono das palavras que usas, pode ser ofensivo, mas a verdade é que a linguística constrói-se como resposta às necessidades de uma cultura e não de um indivíduo. Se queremos construir um futuro realmente diferente do modelo actual, é importante escolher com cuidado as palavras que usamos. O inconsciente cultural do qual fazemos parte, construiu e significou um conjunto de palavras que formam a narrativa em que vivemos, a palavra “nova” é uma delas.

Na minha linhagem e herança colonialista, ‘novo’ apresenta-se como a solução sempre que o velho não presta ou já não serve. Traz em si implícito o descartar do antigo para ir em busca de algo maior, melhor. Afinal de contas quando saímos da “ velha Europa”, fomos explorar e expropriar o “novo mundo”.

O” novo” é o emblema da cultura infantil e individualista onde vivemos. É justamente parte do grande problema que temos em mão. Então se por um lado, imaginar uma “Nova Terra” é importante enquanto processo criativo e exercício de imaginação mítica, por outro deixa implícito num nível sub-consciente que o velho já não serve, que temos o dever e direito de abandonar o que destruímos e ascender a algo diferente. Clamar por uma “Nova Terra” coloca-nos novamente numa posição acima da Terra, como se o ser humano fosse o único responsável pela manutenção e destino deste nosso planeta. Como se a própria Terra dependesse dos humanos para fazer aquilo que faz à biliões de anos. A própria história da Terra está envolta em mistérios, há muito que não se sabe ainda acerca dos seus ciclos de vida/morte/vida.

A Terra desenvolve-se com ou sem humanos, ela é ciclicamente contínua, como aliás tudo o que existe. Nós não precisamos nos esforçar pelo novo, ele chega na hora que chega, é simples assim.

A consciência humana é convidada a abraçar o novo quando o trauma é integrado e re-significado na narrativa, seja individual ou cultural, acredito que esta é a “Nova Terra” em que nos encontramos, no resignificar do tecido traumático, na restauração do novo/velho terreno da consciência colectiva.

Do meu ponto de vista actual (que vale a que vale) o novo chega ciclicamente onde tem de chegar, alicerçado no velho, já que o tempo da evolução é um tempo espiralado e não linear. Nesta perspectiva espiralada, as referências de novo ou velho, perdem sentido.

O cuidado com a expressão “Nova Terra”, levanta-se pela pobreza e aridez de imaginação mítica da nossa cultura moderna. Corremos o risco de nos apropriarmos da imagem da “Nova Terra”, de transformá-la em mais um objecto de consumo, sendo inevitavelmente nós os consumidos por esta parte da psique-colectiva que cresceu desmesuradamente.

Ousemos estar inteiros e participativos nas dores e delícias deste novo/velho mundo.

Possamos gritar as injustiças em plenos pulmões, chorar a perda e a morte dos biomas terrestres como se não houvesse amanhã, pois pode não haver mesmo. Mas juntos, abraçados pelo destino comum que todos partilhamos. Suportados pelas comunidades das quais fazemos parte.

Está na hora de começar a falar sobre um futuro com falta de água, falta de alimentos e condições de habitabilidade, porque esta é a Nova Terra que nos espera, neste mundo concreto em que vivemos.

Esta é a dura verdade, a dura imagem que nós adultos infantis tapamos com anúncios e comerciais de um maravilhoso Mundo Novo.

Se por um lado precisamos de uma imagem imaculada de luz, vida e bondade, onde podemos ir lavar as feridas e alimentar a Alma, precisamos ao mesmo tempo sentarmo-nos à mesa com a imagem oposta e dar a ambas exactamente a mesma atenção, pois aqui está a capacidade de estar no mundo com o mundo, sonhando em conjunto um futuro que se desenhe colectivo, inclusivo e sonhado não por um conjunto de indivíduos previligiados mas pela teia sensiente da qual todos fazemos parte e cuja inteligência vai muito além do Humano.

Nota: adaptado de um artigo publicado a 16 de Setembro de 2020 em anaalpande.com

O cuidado com a expressão “Nova Terra”, levanta-se pela pobreza e aridez de imaginação mítica da nossa cultura moderna. Corremos o risco de nos apropriarmos da imagem da “Nova Terra”, de transformá-la em mais um objecto de consumo, sendo inevitavelmente nós os consumidos por esta parte da psique-colectiva que cresceu desmesuradamente.

Ana Alpande

Ana Alpande

Colunista e Autora regular da Revista

Terapeuta de Trauma, Artista, Astróloga, Contadora de Histórias

A minha missão é dizer não ao desperdício da beleza e procurar contribuir para uma estética que promova a criação de espaços quotidianos que fertilizem o território da Alma.

Actuo como educadora, terapeuta de trauma e facilitadora de grupos terapêuticos de expressão artística e co-regulação emocional.

O principal foco de estudo e reflexão de momento é o trauma individual, transgeracional e colectivo, tendo como pano de fundo a questão do vínculo, nas suas variadas afetações e expressões.

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geral@anaalpande.com