artigo de maria trincão maia

Crescer com o Fogo

3 MIN DE LEITURA | Revista 37

 

Lia aninhava-se no colo, escondia a cabeça e voltava a espreitar. Umas vezes de olhos muito abertos, outras de olhos fechados. Chorava e resmungava no colo, mas não queria ir para dentro. Havia algo ali que a chamava, que a impedia de ter uma reação extrema. Uma dança respeitosa entre o que se estava a passar e o que sentia. Ouvia o barulho das sirenes e dos homens que corriam, sentia a preocupação da proteção da casa. Como um escudo que nascia no peito, um peso que tem tanto de seguro como de incómodo. Era uma missão.

Absorvida pelo momento, pequena de mais para por palavras o que sentia e o que sabia. Via-se a fundir-se com a casa, com a terra, com as árvores, foi o momento em que se sentiu pertença daquele lugar.

Sentia os ramos dos plátanos a encolherem-se, o murmúrio das folhas assustadas a ouvir o gritar das oliveiras que sucumbiam às chamas. Não eram oliveiras novas, mas também não eram velhas, estavam ali desde que a casa fora construída, talvez uma ou outra mais antiga, mas não muito. Não tinham a resistência necessária para lutarem contra as chamas, mas se debatiam de qualquer forma, eram avós, mães, filhas daquele lugar. Abrigavam animais e outras plantas, sem elas ficariam sem casa e sem vida. Naquele espaço nada ficara por queimar.

E Lia sentia, ouvia a terra que calmamente abraçava o fogo, essa sabia, que depois de as cinzas caíssem sobre si eram transformadas, alimentavam-na. Era o ciclo que findava, era a força do fogo que vinha, não o fogo ancestral e natural, mas o fogo acidental. Fogo que nascia entre o choque dos humanos e o lugar, entre o esquecimento de quem eram e do ato de cuidar. Mas era fogo, o fogo que destrói e renova. E a terra abraçava-o por isso, sabia que mais à frente haveria espaço para nova vida. Lia, entre lágrimas, mantinha-se inquieta. Tudo existia fora dela, mas dentro dela… ela era terra, pedras, árvores, plantas, animais e a casa. O seu corpo remexia-se, tudo era ela e ela era tudo aquilo, o seu corpo ardia sem chamas, mas lutava e renova-se. Era demais, e ela aninhava-se, espreitava, remexia-se procurava lugar. O lugar onde tudo existia e nada era dito, onde se encontrava e perdia.

O fogo foi extinto.

Na manhã seguinte Lia sentia o cheiro a fumo, a terra queimada. O que antes era dourado pelo sol do verão, agora era cinza e carvão. Procurava com os olhos na janela alguma réstia de fogo, agora talvez pudesse comunicar com ele, agora talvez o entendesse. Na noite anterior, ele era assustador, como alguém profundamente zangado, um zangado exacerbado pela falha humana do seu conhecimento. Entre essa zanga e o gritar das oliveiras, Lia não conseguia reconhecer o fogo. Era pequena… pequena de mais para se lembrar. E as lágrimas de choro aflito na janela fizeram com que os que a rodeavam assumissem que ela tinha um medo profundo. Mas Lia procurava apenas reconhecer o fogo. O tempo passou, a memória daquele conhecimento ficou guardada entre ela e a terra, mas não na sua mente. Na sua mente ficou apenas aquela impressão de que o fogo se zanga e destrói, de que tudo é frágil na sua presença. E o choro aflito a cada labareda vista foi assimilando o medo.

E o medo tomou o lugar da memória, da audição, da compreensão. Os verões tornavam-se lugares inquietos, da ausência da memória.

Lia cresceu acompanhada por esse medo, enquanto via todos os verões a serra na sua frente a ser queimada, ano após ano a serra queimava. E o mesmo fogo, zangado, incontrolável apresentava-se, subia o morro que outrora fora queimado, agora cheio de vida, para ver melhor o incêndio da serra. Mas Lia tinha medo, ficava novamente inquieta, há muitos anos deixara de andar ao colo, ou ter lugar para o choro pelo fogo, agora ficava apenas imóvel perante o destruidor distante, mas tão presente. Tentava controlar o fogo, mesmo que distante, mesmo sem possibilidade de chegar perto, traçava planos para conseguir salvar o seu lugar. Todos os sentimentos daquele dia voltam a cada verão, a cada incêndio.

Lia não reconhecia mais a voz da terra, o medo tinha-se apoderado de tudo. Se a ouvisse talvez conseguisse lembrar-se, se a ouvisse talvez conseguisse falar com o fogo, mas todos os fogos eram postos, e todos os fogos eram zangados, descontrolados, raivosos, cansados, contrariados. Estes fogos não são sagrados, renovam pela força da terra, mas cansam-na. Dominada pelo medo, Lia sente no seu corpo, nos seus ossos, todos os verões a terra, as árvores, as plantas, pedras, animais e o próprio fogo, mas não os reconhece.

Se a ouvisse talvez conseguisse lembrar-se, se a ouvisse talvez conseguisse falar com o fogo, mas todos os fogos eram postos, e todos os fogos eram zangados, descontrolados, raivosos, cansados, contrariados.

Maria Trincão Maia

Maria Trincão Maia

Editora da Revista

Pessoa, às vezes. À procura de alguma coisa que não sabe o que é. Caminhante por margens, que às vezes anda de carro ou bicicleta elétrica. Uma espécie de estudante e uma estudante de espécie. Designer mas não sabe de que... ainda. Porém, quase preferencialmente: uma metamorfose ambulante.

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