Mil-em-Rama

Coluna de maristela barenco

3 MIN DE LEITURA | Revista 37

Cerzindo a teia da Vida

 

Enquanto escrevo essas linhas, um passarinho pousa no parapeito, do lado de fora da minha janela, numa zona de segurança, ‘espiando-me’ a escrever pelo vidro. Ele me interpela. E eu fico paralisada. Ele desponta logo que as primeiras palavras são desenhadas, e altera toda a rota do meu pensamento e do meu sentimento. Tendo em vista o tema aqui proposto, compreendo que ele vem para compor comigo outras tessituras, nesta partitura musical que é a Vida. Mas eu não sei escrever como um passarinho. Sim, posso não saber escrever como um passarinho. Mas não posso escrever como se ele não existisse. Não posso pensar na dinâmica da vida como se ele não existisse. E, em última instância, se não me reconectar ao canto dos passarinhos, minha escrita não se predispõe ao diálogo. E para que dialogue, mais do que dizer, minha escrita precisa aprender a ouvir, a compor essas tessiituras sinfônicas com todas as formas de vida.

Dias desses ouvia a filósofa indígena Cristine Takuá (@cristinetakua), em uma conversa que não me sai mais do coração. Além de filósofa, ela é rezadora, parteira, educadora independente e artesã. Mas o que nela me atravessa é a lembrança de que precisamos restaurar o diálogo com os seres criativos da floresta. No site www.selvagemciclo.com.br, você encontra o Caderno com a transcrição da fala dela. Quero destacar uma ideia aqui, esta que me interpela o passarinho da minha janela: “A arrogância universal do homem e as diversas leis que hoje nós temos: direitos humanos, direitos da criança, direitos, direitos… humanos! E a paca? E a cotia? E a formiga? A abelha? A samaúma? E todos os seres que vivem na floresta? A gente não vai convidar eles aqui para conversar com a gente – mesmo porque eu acho que eles não viriam. Quando nós vamos conseguir refazer a caminhada e dialogar com esses seres que estão lá? A lontra está lá na beira do rio, pensando como que seus filhos vão conseguir brincar na beira do rio que está podre pelas nossas fezes, pela ganância de todos, de consumo, consumo, consumo (…)”.

No que tange à consciência ecológica, do mundo como uma teia de inter-retro-relações, a humanidade encontra-se dividida, entre aqueles, cujas lógicas são já biocêntricas e aqueles que, como moscas, voam em torno do capital. Não podem ser chamados de antropocêntricos, porque já trocaram, há muito tempo, a vida pelo dinheiro.

As primeiras são as pessoas que, em seus modos de vida, estão a cerzir -como as nossas avós debruçadas nos tecidos esgarçados pelo viver -, a teia da Vida que foi esgarçada, aviltada, fraturada. São pessoas que buscam dialogar com os seus territórios, com a vida vegetal, com a vida animal, com a Terra, como a grande Mãe que nos sustenta. Mas temos o outro lado, que se divide em muitas alas: sejam os senhores do mundo, que maquinam a lógica do consumo e da destruição; seja aqueles que querem mudar, mas só enunciam discursos feitos com as palavras dos que não mudam; seja aqueles que gastam suas vidas na máquina de moer do capital, que vivem a catar as migalhas de sobrevida, que sofrem todos os impactos dos desequilíbrios, como as lontras com seus filhotes nas beiras do rio, e que sequer têm tempo de sentir.

Repetindo Takuá, “quando nós vamos conseguir refazer a caminhada e dialogar com esses seres que estão lá?”. Como podemos cerzir a teia, em um alinhamento entre o pensar, o sentir, o dizer, o fazer e o viver, de tal modo que não exista mais os seres que estão lá? Quando e como refundaremos um pleno aqui, em que a Vida como um todo possa ser legítima Comunidade de Vida, termo sonhado e cunhado pelo documento planetário A Carta da Terra?

Que a coluna de hoje, mais do que qualquer enunciação, seja um manifesto ou as primeiras letras de uma Carta de Amor, ao passarinho da janela, à árvore linda que avisto daqui de casa, ao pôr do sol magnífico que pinta o céu de tons vermelhos no outono-inverno. Mas como não conheço mais as palavras que podem escrever esta Carta, fico com a imagem repleta de sabedoria e resiliência da minha avó, cerzindo a vida nos panos que costurava, em uma existência exaustiva de recompor os fios. Que no silêncio de cada existência, reaprendamos esta arte, porque enquanto a Teia não voltar a ser teia, todas as Vidas vagam como fiapos soltos e tristes. Escrevo para evocar o que a Vida pode ser enquanto Teia. Temos transitado em dois modos de estarmos no mundo, totalmente distintos. De um lado, parte da humanidade se ressensibilizando, sensível e com consciência ecológica, ou seja, ciente das inter-retro-relações de toda a vida, de relações

Quero destacar uma ideia aqui, esta que me interpela o passarinho da minha janela: “A arrogância universal do homem e as diversas leis que hoje nós temos: direitos humanos, direitos da criança, direitos, direitos… humanos! E a paca? E a cotia? E a formiga? A abelha? A samaúma? E todos os seres que vivem na floresta?

Maristela Barenco Corrêa de Mello

Maristela Barenco Corrêa de Mello

Psicóloga e Doutorada em Ciências Ambientais

Formada em psicologia, com doutorado em ciências ambientais, estuda subjetividade, é professora universitária, idealizadora do Canal de Podcast Mil-em-Rama e participante do projeto Conversas do Além-Mar.

Professora do Departamento de Ciências Humanas do INFES - UFF
Professora do Programa de Pós-Graduação em Ensino - PPGEn-UFF
Professora Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente - PPGMA-UFF

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