Mitologia Criativa

Coluna de Élia Gonçalves

4 MIN DE LEITURA | Revista 37

As Primeiras Colheitas

– Regressar a nós – 

Instruções para viver uma vida. 

Presta atenção. 

Espanta-te. 

Conta sobre isso.

Mary Oliver

A quietude do tempo quente assemelha-se, em certa medida, à quietude dos meses de frio intenso, com o seu silêncio profundo que se entranha na pele. Se no inverno a natureza se rende ao movimento da descida e permanece nas suas profundezas, enquanto aguarda a vida que se mexe no invisível, convidando-nos a regressar ao corpo, aos lugares de quietude e à essência, o Verão convoca-nos a saborear os frutos do trabalho intenso em longos processos de contemplação.

Permanecer numa cadeira de baloiço, semicerrando os olhos com a carícia da brisa quente, e deixar que a explosão das cores, a dança constante das borboletas e a leveza bamboleante das abelhas permutem o nosso habitual espaço físico e mental de movimento. Ou deitar na praia, com a luminosidade do sol que nos adormece os sentidos e a frescura do mar salgado que limpa tudo o que não seja o agora.

Há uma certa sonância no Verão, uma espécie de melodia que desponta do próprio calor, do canto das cigarras e de uma paragem peculiar que surge do auge de um movimento. O calor intenso é, na verdade, a lembrança da diminuição dos dias e o breve retorno à descida.

Estas são as primeiras colheitas, os espaços da abundância, da cor e do sabor dos frutos. Elas fazem-se com o reconhecimento do árduo trabalho dos meses que a precederam, a gratidão pelo tanto que se colhe, e o respeito pelos tempos de descanso. Não se colhem cereais, ou frutos, no calor das três da tarde. 

Para a grande maioria de nós, a colheita parece chegar diretamente do supermercado e as chamadas férias são limitadas a datas no calendário, sujeitas a ritmos escolares, tipos de trabalho e combinações prévias. A desconexão é grande e maior se torna quando não trazemos estes lugares dentro, seja através de vivências reais ou de experiências simbólicas internas. Pode não ser viável estar em contacto com os ritmos numa experiência viva de perceção, mas a vida acontece, as estações sucedem e são vividas por nós, consciente ou inconscientemente. Trazemos dentro o mito e este é a linguagem simbólica da própria Terra.

O labor exigente das estações anteriores leva à necessidade de parar. O calor pede-nos desaceleração e tempo para a colheita. Nada cresce quando remexemos incessantemente na terra, sem dar espaço e tempo aos arbustos para que se transformem em árvores, floresçam e deem fruto. Isto serve para a fruta que nos alimenta ou para os frutos do nosso trabalho pessoal, do empenho no emprego ou a busca de melhoria das relações com os outros.

Tudo aquilo em que se labora necessita de tempo e espaço para que a obra seja contemplada. É na paragem que percebemos as distâncias que foram percorridas, as mudanças que se operaram em nós ou o quanto uma relação cresceu. A colheita e a gratidão pelo que se colhe é parte do grande processo de transformação da Vida. Sem que aconteça, não esvaziamos e não permitimos que surjam novos lugares internos, novos processos de consciência e labor. 

Esta fase – a colheita e a gratidão – é também uma das partes mais esquecidas numa sociedade muito pouco conectada com os ritmos da existência, sejam estes internos ou externos. Nestes lugares por onde caminhamos, torna-se status trabalhar até à exaustão e não celebrar colheitas e conquistas, ou dar espaço para pousio e contemplação.

Somos impelidos a funcionar de igual maneira em qualquer altura do ano, seja um tempo de recolhimento, de trabalho árduo ou de contemplação e abundância. Fazemo-lo também, em qualquer momento interno, seja de alegria extrema, de luto ou de vulnerabilidade física. E deixamo-nos queimar incessantemente, como se permanecêssemos ao sol das três da tarde, nos meses de calor. Nunca existiram tantos fenómenos de esgotamento, como nos dias que correm.

Se a quietude do Inverno nos pede espaços de recolhimento, sonos longos e silêncio, o Verão pede lugares de contemplação e balanço. Gratidão pelas colheitas, ainda que possam não ter correspondido a expetativas e ilusões que colocámos. E, sobretudo, espaço para que estas aconteçam, para que nos demos conta das mesmas. E saboreemos os frutos.

Talvez este lugar de expetativas goradas, que por vezes surge no momento de colheita, seja também o derradeiro lugar de crescimento, atualização de quem somos e fonte de aprendizagem sobre as formas como nos atraiçoamos a nós mesmos, nos sentimos atraiçoados ou simplesmente nos esquecemos de quem éramos. São, por isso, fonte da sabedoria e transformação. Há que honrar também estas colheitas, na medida que nos trazem de volta a quem somos. Que nos permitem escolher a vida. Isto também se chama amor.

Parar e contemplar é abençoar a safra, esvaziar verdadeiramente, criando espaços vazios que possam ser cheios com o apelo a novos passos no caminho, centelhas criativas de trabalho, de relações, de partilha, de quem somos. 

Enquanto espaço de contemplação, nada nos enche tanto como a natureza. Ela tem a sua própria forma de nos preencher. Ela providencia alimento, beleza, lazer, frescura, alegria, comoção, inspiração. Desperta-nos os sentidos e recoloca-nos perante o tanto que nos é dado e o tanto que somos. Coloca-nos em contacto com o nosso Feminino Selvagem, indomesticado e recetivo.  E torna-nos contentores da sua sabedoria.

Regressamos a nós quando regressamos aos ritmos da Vida que acontece. Quando escutamos verdadeiramente o nosso lugar no mundo. E nos rendemos à sabedoria do chão que nos sustenta e acolhe.

O labor exigente das estações anteriores leva à necessidade de parar. O calor pede-nos desaceleração e tempo para a colheita. Nada cresce quando remexemos incessantemente na terra, sem dar espaço e tempo aos arbustos para que se transformem em árvores, floresçam e deem fruto.

Élia Gonçalves

Élia Gonçalves

Colunista e Autora regular da Revista

Psicóloga
Terapeuta Transpessoal
Sub-Direção EDT – Escola Transpessoal

Contadora de Estórias
Mitologia Pessoal Criativa 
Autora do Mito de Ophídia

elia.gonçalves@escolatranspessoal.com