artigo de mizé jacinto

A Soleira da Porta

3 MIN DE LEITURA | Revista 37

Sempre vivi na soleira da porta, à espera do futuro, e desde cedo desenterrando o passado, faminta de uma outra vida, seguindo o rasto daquele cheiro que me fazia percorrer distâncias infinitas, dentro de mim, sempre dentro de mim, porque o muro alto que cercava a família, a aldeia, o país acabado de sair de uma ditadura, de uma guerra, e tantas vezes da fome, estava lá, sempre lá, num olhar que me congelava, nas palavras que cortavam e desfaziam as cores em pedaços, na ausência da esperança que não fosse a de ter um bom trabalho, uma casa e uma família. Não havia lugar para a diferença nem para a mudança. As regras comunitárias carregadas de uma moral religiosa traziam para dentro de casa uma ditadura mascarada de normalidade. Era preciso pertencer, independentemente da presença individual, um tesouro enterrado nos limites de tudo, onde poucos ousavam ir, e onde se pagava um preço alto caso ousássemos desenterrá-lo. Viver na soleira da porta não tinha qualquer importância desde que fizesse a minha parte. Reclamar, perguntar ou negar a obediência era perigoso, senti-o vezes sem conta, sentiu-o o meu pai, o pai do meu pai, e talvez outro e mais outro lá para trás. Esmagados pelo peso do coletivo quantas vezes terão dito sim, quando queriam dizer não, ou vice-versa. 

Caminhamos sem pisar o chão, movendo a carga pesada do passado, da dormência, da alienação e desresponsabilização, a criança ferida, perdida e assustada, a criança órfã. O adulto ferido, perdido, assustado, o adulto órfão. Abandonados a nós mesmos e por nós mesmos na cegueira dos dias, da máquina pesada da sobrevivência, da mão de obra escrava e servil. Alimentando a obediência, o maior, o senhor, o doutor, o mestre, sempre o topo da pirâmide. Nutrindo fielmente os fantasmas internos, numa lealdade cega ao novelo cheio de nós, doa o que doer. 

Contudo, as brumas que escondem o caminho são tão temidas quanto incríveis fontes de informação. O vórtice do medo e da incerteza recorda-me a cada momento que a vida é de uma criatividade sem limites. E isso acorda em mim todas as células, criando mapas de possibilidades. 

Viver na soleira da porta é viver num espaço limiar, onde a vida também acontece, e se estende em múltiplas direções.

Olho para baixo e o que nuns dias parece ser um fosso negro, também se revela um imenso portal. E beijo esta terra debaixo dos meus pés que é o silêncio vivo, um livro onde leio as memórias dos meus ancestrais, uma biblioteca infinita, tão profundamente rica, ainda que árida e seca, falando numa linguagem que se revela camada após camada. Debaixo dos meus pés abre-se a visão plena, nesse negrume vive a vida. Aqui vibro e aprendo todos os dias.

Olho para cima, os olhos enchem-se de espanto. Sempre achei que era tão pequena que não teria lugar nesta imensidão, e levo-me até à exaustão na procura de entender o infinito. E algures num momento de rendição, uno a terra com o céu e o céu com a terra, sabendo que não há nada nem ninguém que não faça parte disto. Incluindo eu. E aqui devolvo aos meus olhos o brilho e as lagrimas. Devolvo o sonho ao seu lugar de pertença, e deixo que a vida se sonhe a si mesma. 

Olho para dentro, para um lugar que é ordem e caos, que é um casulo seguro e fecundo, uma prisão e uma celebração. No tempo circular os opostos são pontes para o viver. E o coração alegra-se cada vez que acolhe todas as faces desta presença. Aqui residem as escolhas, as consequências, e a possibilidade de reescrever a história, porque a vida é filha do amor.

Deste lugar, desde a soleira da porta, inquieto-me e aquieto-me. Sei que o véu que esconde também revela. Sei que estes tempos, como outros no passado e porventura no futuro, são oportunidades para fazer melhor, e que a desconstrução também é uma dádiva.

 
A paisagem onde me movo revela-se nos mais simples e delicados gestos, e também na catarse, no choro e no pranto, no largar e no tomar, e permite entender uma lógica que vai muito para além da mente. Aqui a vida mostra-se na sua complexidade, na lentidão dos passos firmes ou na velocidade do que é superficial. E tudo faz parte, porque ainda assim o sou. Mas também me convida, como sempre o fez, a olhar para além do óbvio, da aparente solidez e da aparente desordem. Isto eu agradeço todos os dias.

Ontem comprei mais 3 árvores. Tenho dias que não preciso de mais nada.

Deste lugar, desde a soleira da porta, inquieto-me e aquieto-me. Sei que o véu que esconde também revela. Sei que estes tempos, como outros no passado e porventura no futuro, são oportunidades para fazer melhor, e que a desconstrução também é uma dádiva.

Mizé Jacinto

Mizé Jacinto

Terapeuta e formadora de Leitura Intuitiva da Aura e Constelações Livres

Oráculo.
Sustento encontros e retiros com o enfoque na re-ligação ao corpo-terra e conexão com as memórias e lugares mágicos ancestrais, como pilares alquímicos e de ritualização nos processos de pontes para a Consciência.
Designer de Moda.
Criadora do Projecto skIN, sessões de integração pessoal do corpo e identidade através da Fotografia.
Criadora do Projecto ONE – fotografia de intervenção consciente.
Fundadora da Casa da Eira, em Caldas da Rainha, espaço que tem sido desde 2005 um ponto de encontro de pessoas que se buscam a si mesmas e que pela partilha se vão conhecendo e expandindo.

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