Biografia dos dias sem princípio
Coluna de Inês peceguina3 MIN DE LEITURA | Revista 37
A criança disse/ tu és uma adulta.
E a outra disse/ não podes subir por aí.
A criança disse: tu és uma adulta. E a outra disse: não podes subir por aí.
As duas disseram
nas suas vozes de criança, os agudos generosos e dóceis, palavras que
não
são suas.
A primeira observava-me sempre que eu chegava para dançar.
Ela saía.
Eu seria talvez mais velha ou igualmente grande como a sua mãe. Adulta.
Adulta.
Adulto.
Os adultos não se põem a dançar.
assim
Ou são professores de dança.
Ou bailarinos a sério.
Senão, não sendo uma ou outra.
São adultos.
Os adultos não dançam.
assim.
Um dia decidiu.
Denunciou-me.
Tu és uma adulta.
Nesse momento traçou firme a linha que separa os lugares verdadeiros dos outros.
Permitido versus proibido.
Linhas paralelas.
sorri-lhe.
Pisquei-lhe o olho.
A grande descoberta foi a do atrito.
Conflito.
A harmonia da ordem.
A beleza inusitada da desordem.
O caos que convida à possibilidade.
Sim?
Ou não?
Sim?
Ou não?
Possível?
Impossível?
Não podes subir por aí.
Outra vez a voz branda, porcelana intacta.
Eu a subir o escorrega pela zona tradicional
Da descida.
Desta vez perguntei.
A voz curiosa.
Porquê?
A resposta evidente.
É para descer.
E ainda.
Os pais não podem.
Conflito cognitivo em dupla.
Afinal é para que lado?
Não são para todos as regras?
Onde é que está o pai ou a mãe deste adulto?
Observo-as.
Às crianças. Aos cuidadores. Mães, pais, avós, professores, educadoras.
Vigilantes atentos e rigorosos na dança da descoberta.
o caminho não se bifurca.
O branco e o preto.
Entretanto as cores todas deste momento que na urgência de reconhecer
todas as possibilidades
amplia ás vezes as distâncias.
Observo-as.
E muitas vezes pergunto (me):
– Onde é que tu estás?
criança
Onde está a tua voz?
criança.
As tuas palavras
o teu vendaval.
Onde está a ousadia do erro?
para errar melhor.
A infância é o estado líquido da pessoa.
e incrivelmente,
são tantas as crianças-pessoas que logo nesse momento
sucumbem à constrição dos moldes
forma oca, configurada de acordo com o que se quer criar
oca
dos modelos
A turba
– onde é que tu estás?
Porque não dúvidas?
Porque te magoa que eu possa dançar?
Porque te inflama que eu possa subir, por onde se
desce?
Não é teu, por natureza, tua, por natureza,
a descoberta?
Observo-as.
Identifico as palavras
em duplicado.
Os movimentos
em duplicado.
Criança obediente.
sossegada.
Imagino.
Como será quando descobrirem o arbítrio?
as condições.
Que a verdade, seja ela de que base for, é sempre uma aposta
um salto de fé
Como será quando a aleatoriedade um dia lhes tocar
o imprevisto
Que afinal controlam muito menos do que esperavam.
Que há coisas que não voltam para trás
que não vão para lado nenhum
irreversíveis
Quando souberem que o seu tempo de brincar
foi meticulosamente domesticado
imoralmente ocupado com certezas irrevogáveis
que ser inteiro é ser fragmento
que a moralidade não é um requinte humano
que os olhos
e o
silêncio
falam muito mais alto
se conseguirem a delicadeza de ouvir com a pele, com os olhos
que a violência existe sim
e que começa por ser uma coisa pequenina.
Como a infância
Sublimada.
marca de água.
Que não é por merecermos ou por não merecermos,
e que o destino
é o lugar onde fomos parar
logo nos bastidores.
Cada divisão celular
E ainda assim.
Há espaço para a divergência
O recomeço
re-criar.
Observo-as.
Desejo que a infância venha antes desse naufrágio
Que alguém as descalce
que experimentem a terra
Que alguém abra a perspectiva
técnica de representação tridimensional que possibilita a ilusão
Desejo que a música as invada absolutamente
O instrumento
Cordas
Percussão
O corpo todo indistinto das vibrações
a evolução progressiva, indelével das emoções todas numa explosão de existir
esse momento
que chegue
pela musica
pelas histórias
pelas montanhas
Venha de onde vier
a morte
A perda é tantas vezes essa porta de entrada em direção a si
Que sintam a ausência absoluta do significado do que é a sua singularidade
Senão parte de qualquer coisa onde pertencem
inteiramente
Observo-as
Danço por ti
criança
Subo ao contrário por ti
criança
Não por ser contrário a uma coisa qualquer
Ou por ser singular
diferente
divergente
Mas porque descobri que é esse o lugar
o momento
A porta por onde entro
Para me encontrar
e um dia,
quando não conseguir dançar com o meu corpo adulto
velho
A minha voz de graves generosos e dóceis
espero ainda a música
e o silêncio
e ser capaz de sentir esse nada
que é ser tudo
ao mesmo tempo.
O corpo todo indistinto das vibrações
a evolução progressiva, indelével das emoções todas numa explosão de existir
Inês Peceguina
PhD em Psicologia do Desenvolvimento e Pós-Doutoramento em Psicologia da Educação
Pessoa que se intriga.
Investigadora no Centro de Estudos e Pesquisa, da Operação Nariz Vermelho.
Com deambulações pelos territórios da Psicologia e da Educação.
Quase 12 anos de experiência no papel de mãe, a cometer os erros clássicos e mais alguns.
Pessoa que se encontra na escrita e que às vezes na escrita encontra o outro.
Bailarina de fim-de-dia e atleta de nascer do sol.