O canto do verbo

Coluna de Ana Alpande

2 MIN DE LEITURA | Revista 34

Sustentar paradoxos e incertezas, cultivar a arte de estar vivo

Somos paradoxais por natureza, querer reduzir a experiência humana a um estado, sentimento, opinião, posição, função é altamente violento. Muitos sentimo-nos vazios, sozinhos e desconectados da pertença à teia da vida, um dos vários motivos é justamente a ideia que nos foi incutida de que precisamos ser só uma só coisa; ter uma identidade fixa ou habitar fronteiras bem seguras e definidas entre a ideia que temos de quem somos e do mundo que habitamos versus aquilo que não compreendemos ou não conseguimos explicar.

Nem tudo na vida tem explicação e talvez assim seja para nossa própria proteção. Podemos e devemos permitirmo-nos ser plurais e vastos e às vezes até mesmo incertos no que toca os nossos sentimentos e sensações. Mas estar incerto do que sinto ou penso é muito diferente de negligenciar a pergunta: “Como é que me sinto em relação a…” ou “O que é que penso sobre…”?

A incerteza quando acompanhada de curiosidade, expande e abrange, cria possibilidades; a negligencia pelo contrário isola, magoa e gera desconfiança.

É necessário entender a diferença entre não ter certezas ou não ser capaz de articular algo racionalmente coerente, e não querer saber porque custa aguentar o desconforto de não encontrar garantias ou de não nos enquadramos num formato expressivo conhecido ou idealizado, seja pela cultura, seja pelas nossas expectativas/crenças pessoais.

Se parar por uns minutos enquanto escrevo estas linhas, e fechar os meus olhos aguçando a minha presença no corpo irei perceber que distintas zonas devolvem-me diferentes sensações. Posso estar a sentir dor e desconforto na zona lombar, ao mesmo tempo acolher o sol que me acaricia a cara tornando a minha pele morna e confortável. O meu maxilar pode estar tenso enquanto as minhas pernas relaxam esticadas na cadeira. Sou a mesma, o corpo uma coisa só, mas simultaneamente sinto coisas distintas e não preciso saber porque é que sinto o que sinto, para poder observá-lo, ser testemunha e ainda expressá-lo neste artigo.

Quanto mais tempo passo em observação compassiva, mais o meu corpo se abre a mim, mais sensações me irá devolver, mais paradoxos, logo maior e mais rica será a nossa conexão: tanto a minha com o meu corpo, a nossa leitor/escritor quanto a relação com o mundo em todas as suas dimensões e pluralidades. Cortar esta relação com a variedade e a contradição inibe o nosso direito inato a sentirmo-nos conscientemente em comunhão com a teia da vida.

Posso estar a fazer o luto de um ente-querido e ainda assim maravilhar-me com a vida que brota no jardim, isso não garante que saia do luto mais cedo ou que este seja menos intenso, mas devolve-me ao lugar onde estou, a uma presença profunda de mim mesma na complexa teia de relações da qual faço parte.

É importante acolher a diversidade paradoxal em nós: validá-la, celebrá-la e ficar presente no lugar onde estamos, no agora porque… passado esse momento, tudo pode ficar diferente e está tudo bem. No movimento e na diferença a vida está a ser exatamente o que é: Vida.

Afinal de contas a impermanência é o estado mais permanente do acto de se estar vivo.

Cortar esta relação com a variedade e a contradição inibe o nosso direito inato a sentirmo-nos conscientemente em comunhão com a teia da vida.

Ana Alpande

Ana Alpande

Colunista e Autora regular da Revista

Terapeuta de Trauma, Artista, Astróloga, Contadora de Histórias

A minha missão é dizer não ao desperdício da beleza e procurar contribuir para uma estética que promova a criação de espaços quotidianos que fertilizem o território da Alma.

Actuo como educadora, terapeuta de trauma e facilitadora de grupos terapêuticos de expressão artística e co-regulação emocional.

O principal foco de estudo e reflexão de momento é o trauma individual, transgeracional e colectivo, tendo como pano de fundo a questão do vínculo, nas suas variadas afetações e expressões.

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