Biografia dos dias sem princípio

Coluna de Inês peceguina

9 MIN DE LEITURA | Revista 34

Mind Reading, Conformismo e Educação Suficientemente Boa

Nos últimos tempos tenho pensado sobre se uma educação mais centrada nos interesses e motivações criança onde mais vezes, do que menos, as escolhas sobre o que fazer e como, partem da sua vontade, permite a uma criança (em média) ser mais capaz de se afirmar. Uma criança mais assertiva. Que se conforma menos à vontade do outro. Sem desconsiderá-la, mas antes capaz de articular os seus desejos, intenções, emoções, e comportamentos, com os desejos, intenções, emoções (e comportamentos) do outro, de modo a que a balança se mantenha mais ou menos equilibrada, sem pesar demasiado para um ou para o outro lado.

Neste pensamento, fui ao baú espreitar as experiências clássicas da psicologia social, algumas muito polémicas, tais como as da obediência à autoridade de Milgram (1963). Muito brevemente, nestas experiências, o objectivo consistia em medir a tendência de indivíduos do sexo masculino (naturalmente já se sabia que as mulheres são muito menos submissas) para obedecer a figuras de autoridade que os instruíam a realizar uma sequência de acções em (suposta) contradição ou conflito com a consciência individual (moral?). Assim, pedia-se que administrassem choques eléctricos a uma pessoa que, noutra sala (longe da vista, longe do coração), estaria numa situação de aprendizagem (de inspiração claramente Pavloviana). A cada erro, uma descarga eléctrica, gradualmente de maior intensidade, até níveis de fritura, farturinha humana.

Os resultados foram terríveis. Uma proporção de homens muito acima do esperado obedeceu cegamente às instruções, mesmo que o não fizesse de ânimo leve (uff! que alívio) até atingir voltagens mortais. Vale a pena acrescentar o contexto social e histórico durante o qual estas experiências foram desenvolvidas; três meses após o início do julgamento do criminoso de guerra Adolf Eichmann, Nazi. Trazer aqui que Hanna Arendt, uma filósofa judia desenvolveu o conceito de Banalidade do Mal a propósito deste julgamento.

Milgram, como Arendt, tentou  compreender até que ponto Eichmann, à semelhança dos milhões de cúmplices no Holocausto, estariam “apenas” a cumprir ou a seguir ordens? Não é o propósito deste texto explorar esta questão. Seja como for, é importante esta introdução para pensar também que as questões essenciais tendem a atravessar-se ao longo dos tempos e mesmo que mudem os suportes pelos quais se exerce violência, a coação, a natureza humana é suficientemente diversa mas também limitada na sua estrutra e universais. Ou seja, continuamos todos a nascer irremediavelmente dependentes do outro para sobreviver e, salvo raras excepções ou momentos na vida de cada um, tendemos a viver melhor (e mais tempo) quando temos relações nutritivas, tanto para o espirito, como para o corpo.

Regresso ao principio. Penso se estas crianças, a quem se permite ter uma voz activa desde cedo, crianças que participam, na medida do bom senso (que não sei dizer qual é) nas decisões que lhes dizem respeito: o que vestir, o que comer, o que aprender, e por aí fora (já agora, dizer que é relativamente fácil que façam escolhas interessantes, se forem também interessantes as opções dadas) um dia adultas, reproduziriam os mesmos resultados.

Será possível transformar a natureza de uma pessoa? De uma espécie? De gerações consecutivas?

Assumindo (eu assumo) que a natureza de uma pessoa é o que resulta dessa dança dos seus códigos, o seu ambiente, e outras componentes que chegam por via de outras linguagens além do Ocidente, é possível que mudanças no ambiente conduzam mesmo a mudanças na engrenagem, de tal maneira que é como se nascesse uma espécie de novo código dentro daquela família? Naquela geração?

Um dia, sem ter outra motivação que não fosse a de cumprir eu uma instrução “olha, podes aplicar este questionário a uma criança dessas?” E eu, “posso, claro”. “Só por curiosidade, para ver se há assim diferenças grandes… No auto-conceito”. E eu, “sim, claro, até conheço bem este questionário”. Um conceito que se divide para um lado ou para o outro. Um exemplo inventado agora mesmo: “algumas crianças não gostam de barulhos altos” ou “algumas crianças gostam de barulhos altos”. A criança posiciona-se num dos extremos e depois é solicitada a responder se se sente “exactamente assim”, ou “um bocadinho assim”.

Acontece que esta criança, uma dessas crianças, supostamente em crescimento participativo, começa a responder coisas como “ah, mas eu não sou assim”. Ou “nada, eu não sou nada assim”. Ou ainda, “olha depende, depende dos dias, do barulho…” “Ops”. Penso eu. “Ora… Que não antecipei isto. Nunca nenhuma criança, comigo, tinha respondido alguma vez fora das opções que lhe dei”.

E é curioso que nunca tenha sequer pensado sobre isso. Sobre o sentido que faria essa resposta. Sobre a importância que seria admitir a ausência total daquele traço, ou a sua variabilidade. Afinal, não somos assim mesmo? How dare you, rebel child!? Mas não foi isso que eu senti. O que eu senti e pensei foi mais “uau” que unexpected! Tenho de aplicar o questionário a mais crianças destas. Perceber se isto não é apenas uma singularidade, um outlier.

E logo depois, logo depois, as minhas memórias deambulam à disciplina de Psicologia Social, à Professora Gouveia Pereira, primeiro ano de faculdade, Milgram, Solomon Asch, obediência, conformismo, pressão social, manipulação… Dependência e autonomia. Ou dependência versus autonomia? Tem de ser sempre uma ou outra? Voldermort ou Harry Potter? Com glutén ou sem? Amamentação, ou suplemento? Basmati ou integral de grão redondo? Amigos ou inimigos?

Antes de me lançar numa investigação privada, fui pesquisar sobre se estes paradigmas têm sido revistos nos últimos tempos, com que objectivos, com que questões subjacentes, com que resultados. Mais ainda, se há quem tenha tido também curiosidade em considerar o comportamento de crianças nestas matérias e, ainda mais inovador, das meninas!

E descobri algumas coisas. Em 2011, um grupo de investigadores averiguou em que medida crianças de 4 anos ajustavam (conformavam) o seu comportamento e opiniões às do grupo. Participaram 96 crianças, divididas em grupos de 4. Os resultados mostraram que as crianças tendiam a conformar-se à opinião dos 3 pares que tinham cometido erros óbvios, mas publicamente unânimes (nestas experiências, pedia-se às crianças que decidissem comparativamente sobre o tamanho de linhas rectas).

Noutro estudo, sequencial, os resultados indicaram que, afinal, as crianças apenas se conformavam à opinião dos pares, quando o seu julgamento era exercido publicamente, o mesmo não acontecendo quando lhes era solicitada uma resposta em privado. Ou seja, davam a sua opinião (não conformista), apenas ao investigador, sem ter de a revelar a todos (Haun & Tomasello, 2011).

Estes resultados, na minha leitura, são positivos por indicarem que embora possa existir pressão para ser igual aos outros, uma pressão muito elevada em algumas circunstâncias, isso não leva mesmo a uma alteração da percepção. Seria talvez mais assustador se isso pudesse acontecer. Um nível de manipulação tão elevado que levasse uma pessoa a ver, literalmente, outra realidade.

Não que isso não aconteça. Afinal, com o passar do tempo, com a repetição, água mole em pedra dura, talvez tudo se possa transformar, incluindo a percepção livre de enviesamento, de aprendizagem, de hábito. Seja como for, aos 4 anos, para estas crianças sobre quem nada sei em matéria de educação(ções), no seu silêncio, na sua intimidade, mora ainda a sinceridade. Mora também (já), a consciência de que é preciso às vezes misturarmo-nos na turba, sob pena de a turba nos enjeitar. Essa consciência, essa cedência, não é por si só negativa, sinal de obediência cega, de desistência do eu pelo outro, do interno pelo externo. É essencial esse movimento de ajuste para manter a balança mais ou menos equilibrada, sem pesar demasiado para um ou para o outro lado.

Esta consciência é aquele nível de little lies que todos sabem ser necessária. O resultado da habilidade para ler a mente do outro, sabendo com o tempo, e a experiência, que há uma hierarquia de mentes, de ideias, de opiniões, e que é a compreensão dessa estrutura intrínseca, desse invisível que dá a alguns a possibilidade para publicamente dizer o que pensam, e a outros não.

O meu exercício do pensamento, começou por ser sobre se esta avaliação (mais ou menos consciente), é suficientemente afectada pelas experiências continuadas. Pela educação, da família à escola, do bebé ao adulto. Porque uma coisa é decidir que às vezes não nos expomos, na contradição com os que nos são queridos ou superiores hierárquicos. Outra coisa é não saber que o podemos fazer. Outra ainda, é ficar num estado de aflição (e logo a seguir com uma otite que nos impede de ouvir, vozes de fora e de dentro) se ousamos sequer ao pensamento de ter um pensamento diferente dos que são importantes para nós.

E estas decisões todas, provavelmente, resultam dessa história individual de cada um, mas também de um colectivo que é condicionado desde cedo a não colocar muitas questões sobre muitas coisas. Talvez seja esse travão às perguntas, à dúvida, às explicações (eu sei que as explicações levam tempo, dão trabalho e às vezes são uma porta de entrada luminosa para que outras perguntas se façam nascer), que levam depois a que muitas crianças, questionadas sobre se observam “a” ou “b”, não lhes ocorre que possam “c”. Ou se lhes ocorre, depressa essa ocorrência é arrumada para outro lugar qualquer, porque se o adulto não lhe oferece essa opção, então talvez deva guardá-la, no seu intimo. No seu silêncio gestante de ecos e sombras que lhe arrastam o adormecer.

Porque só dessa forma é que um escala de avaliação que é aplicada repetidamente a tantas crianças um pouco por todo o mundo ocidente, pode sobreviver enquanto medida válida e fiável. Se os miúdos devolvessem “cês” e “dês” e “efes”, então seria preciso reconsiderar. Como uma balança que é preciso (re)calibrar. Como um passador de buracos muito grandes.

E estes miúdos cujos pais optaram por uma outra educação, desmanualizada, será que estes miúdos conseguem ser sempre autênticos? E até quando? Porque há de certeza neles também a necessidade de pertencer, de ser igual, de alinhar, de se fazer de parvo, de desaparecer num gesto de gestalt. Sobretudo na adolescência. Sobretudo em banho de testoesterona.

E os outros miúdos, os “tradicionais”, não são de certeza todos submissos, cordiais, complacentes com todas as regras. Fará mesmo diferença? Uns que não podem/devem dizer não e ou outros que podem, desde muito cedo?

Sandra Scarr, a primeira mulher professora a full time na Universidade de Yale, investigadora em Biologia e Evolução, há muito tempo que sugere que não. Que a parentalidade, a família não tem assim tanto impacto. O mesmo para as instituições educativas fora da família. De acordo com os seus estudos, as crianças conseguem desenvolver-se de forma ajustada numa enorme variedade de experiências e formas de famílias; uni-pai e\ou mãe, pais que vivem em união de facto, múltiplos cuidadores e comunidade, e famílias mais tradicionais pai-mãe (pelo menos assim vistas de fora).

O que é essencial a qualquer modalidade, parece… Surpresa…

É que os adultos sejam atentos e amem a criança. O importante, é que a criança se sinta amada, respeitada, ouvida. Eu concordo com a Sandra. A ideia de Scarr pode ter tido a sua origem no pensamento de Winnicott. Donald Woods Winnicot, no seu The relationship of a mother to her baby at the beginning (1965), sugere então que nesta coisa dos principio, é fundamental que a mãe seja “suficientemente boa”. Das suas observações das díades mãe-bebé, Winnicott observou que as mães, as suficientemente boas, são as melhores “tradutoras” do bebé. São quem está continuamente com o bebé e quem sabe melhor o que aquele bebé quer dizer.

Neste artigo, refere que este começo de relação pode correr mal essencialmente de duas formas: (1) ou a mãe está a uma distância irremediável do bebé, indisponível para o vínculo, e nessa inabilidade para se ligar, não consegue ser sua contentora, não consegue efectivamente “segurar” o bebé; ou (2) a mãe está tão preocupada em ligar-se ao bebé, em ser imediata, profeta das suas necessidades, que este bebé se transforma numa preocupação patológica. Se é natural que esta preocupação, este zelo excessivo, pézinhos de lã sejam necessários nos primeiros tempos, como um momento de adaptação a este novo mundo, o do bebé e o de quem dele cuida, é natural também que gradualmente (o cuidador) encontre um lugar mais equilibrado que não seja o da preocupação constante.

Tenho a impressão de que hoje em dia o número de mães do Tipo 2 tem vindo a aumentar. Mães excessivamente boas. Mães e pais. E educadores, e cuidadores. E avós. E professores. Há, na minha opinião, uma tão grande preocupação com tantas coisas, que nessa ansiedade, em dar o melhor, não damos às vezes o necessário. O essencial. Na dose certa, nem muito para baixo, nem muito para cima. Winnicott refere mais à frente no artigo que, por exemplo, falhas neste holding, uma resposta (supostamente) básica do cuidador que sinaliza o seu grau de identificação com o bebé, tendem a dar origem, na criança (mais tarde no adulto), a algumas sensações, designadamente: de se fazer em bocados (sense of going to pieces); estar em queda permanente; de que a realidade externa (o outro) não pode ser usada para apaziguar-se, etc.

Esta interferência excessiva, paralelamente, é também insuficiente na medida em que não deixa nenhum espaço vazio. Um silêncio. Uma respiração. Um lugar que seja o seu. De tédio. E de onde possa vir, talvez, em suficiente amor e atenção, nem muito, nem pouco, a existência própria. Capaz de dizer “sim”. E capaz de dizer “não”. Ou “talvez”. Dizer não é talvez mais importante do que dizer sim. É o “não” que faz o lugar dos braços. Das paredes. Da pele.

Continuo curiosa. Será que estes miúdos desmanualizados dizem mais vezes “não”? Sem se importarem muito? Seguros de não lhes negam depois o colo? Que são na mesma convidados para as festas de aniversário? São na mesma parte, dessa parte que é a relação, as relações, da diáde ao grupo. Saberão melhor integrar as diferenças, sem que se transformem em vulnerabilidades, em abismos cheios de nevoeiro?

Era bom que mais pais, professores, educadores, avós, todos os que são adultos e que com mais ou menos presença estão na vida de crianças, sentissem que afinal, ao que parece, só é preciso ser “ok”. Que os miúdos também se sairão “ok”. Neste “irmão do meio”, parece-me, sobra mais espaço e mais tempo para cada um ser o que precisa de ser. E isso, disse-me a criança, uma daquelas, depende. Não é todos os dias que o barulho de uma porta a ranger traz consigo o arrepio galvânico. Nem todas as noites.

Mora também (já), a consciência de que é preciso às vezes misturarmo-nos na turba, sob pena de a turba nos enjeitar.

Inês Peceguina

Inês Peceguina

PhD em Psicologia do Desenvolvimento e Pós-Doutoramento em Psicologia da Educação

Pessoa que se intriga.
Investigadora no Centro de Estudos e Pesquisa, da Operação Nariz Vermelho.
Com deambulações pelos territórios da Psicologia e da Educação.
Quase 12 anos de experiência no papel de mãe, a cometer os erros clássicos e mais alguns.
Pessoa que se encontra na escrita e que às vezes na escrita encontra o outro.
Bailarina de fim-de-dia e atleta de nascer do sol.