Mil-em-Rama

Coluna de maristela barenco

3 MIN DE LEITURA | Revista 34

Quando a palavra-fio esgarça

Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.

Manoel de Barros, em O Apanhador de Desperdícios

Já disse que manufaturamos o nosso viver através das palavras. Mas em um mundo em que as palavras andam “fatigadas de informar”, como desabafa o poeta cuiabano, e em um mundo onde se faz guerras depois de pandemias, qual o sentido do dizer?

Há condições existenciais onde as palavras cessam. Há condições sociais em que as palavras não mais comunicam, em que se profana as palavras sagradas, em que é preciso criar outra gramática. O silêncio ou a interrupção da palavra, em tempos de crise e guerra, soa-me mais importante do que palavra. O filósofo Gilles Deleuze nos diz que ‘somos atravessados a tal ponto por palavras inúteis, que é preciso criar vacúolos de silêncio para poder ter algo a dizer’. Já o filósofo Peter Pál Pelbart, na perspectiva de Deleuze, diz que precisamos “produzir” silêncios.

Por que há contextos que as palavras não mais comunicam e não produzem relações e afetos? Penso que isso acontece quando se banaliza as palavras, fazendo com que as palavras do agressor seja a mesma dos oprimidos. Se a guerra e a paz usam as mesmas palavras para falar de projetos tão antagônicos, como manter o lastro de uma palavra a serviço da Vida?

Como podemos trazer a palavra para produzir e compor silêncios fecundos? Como trazer a palavra reflexiva, pausa musical, que é capaz de dar sentido à melodia da Vida?

Penso que precisamos nos acercar de algumas precauções.
A primeira delas, é que não se pode falar qualquer coisa que seja, em tempos de guerra, como se ela não existisse. Isso significaria uma grande omissão. A lucidez e a compaixão nos convidam a ocupar o coração da crise. Olhar para ela. Compreender de que fios ela é tecida. Admiti-la. Ouvi-la. Enxergar-se a partir dela. Não se muda nada sem reconhecimento.

A segunda delas, é que, havendo crise, não podemos falar dela como se não houvesse alternativas, saídas, possibilidades. O sociólogo Boaventura de Sousa Santos nos adverte que a sensação de que não existem alternativas é um modo de subjetivação forjado pela lógica colonial, para afirmar-se a si como a única possibilidade. As crises são períodos dolorosos, mas também preciosos para se pensar nos limites de nossos modos de viver, e para se pensar em modos de viver que nunca mais repitam os padrões de sofrimento.

A terceira delas é, ao falar sobre alternativas, não podemos trazer a palavra de forma arrogante, como se estivéssemos aquém ou além da crise. Estamos todos do mesmo lado da linha. Fomos todos forjados em uma mesma lógica. Somos todos partes do problema. E podemos ser, se quisermos, partes das possibilidades e soluções.

Finalmente, não devemos falar e pensar a crise e a guerra, utilizando a lógica da crise e da guerra (para sairmos dela). Se temos aversão à Guerra, precisamos cuidar amorosamente dos lugares, em nós, que produzem as formas de violência. Às vezes não praticamos violências físicas e nem verbais, mas ainda praticamos violências emocionais; continuamos a produzir inimigos em nossas formas de pensar e sentir. Digo sempre que o que transforma a alteridade – que é condição da vida -, em problema, é a oposição, é a manutenção do princípio de separatividade.

Mergulhar, pois, no silêncio, para recriar palavras e gramáticas que sejam capazes de compor outros mundos e novas poesias, parece-nos um convite regenerador. O poeta Manoel de Barros, em sua poesia O Apanhador de Desperdícios, dá-nos algumas pistas: “é preciso entender o sotaque das águas”; “respeitar às coisas e aos seres desimportantes”; “prezar insetos mais do que aviões”; “prezar a velocidade das tartarugas mais do que a dos mísseis”. Como ele, eu também gostaria que “a minha voz tivesse um formato de canto”. Sim, é ocasião de trazer as palavras para compor silêncios.

A proposta desta seção é ir manufaturando essas palavras que curam e regeneram, a nós e o mundo. O nome da seção, Mil-em-Rama, é um dos nomes da planta Achillea Millefolium, uma planta medicinal, que é analgésia, antibiótica, antimicrobiana, anti-inflamatória, adstringente, antirreumática, anti-hemorrágica, digestiva, estimulante e expectorante. Duas ações terapêuticas dela me fascinam: aliviar dores e favorecer a circulação. Tudo o que precisamos neste tempo! Mas eu a escolhi porque ela evoca multiplicidade! Ela traz mil ramas em uma rama. E deste contexto plural que quero pensar e criar as palavras. Que possamos seguir juntos!

Mergulhar, pois, no silêncio, para recriar palavras e gramáticas que sejam capazes de compor outros mundos e novas poesias, parece-nos um convite regenerador.

Maristela Barenco Corrêa de Mello

Maristela Barenco Corrêa de Mello

Psicóloga e Doutorada em Ciências Ambientais

Formada em psicologia, com doutorado em ciências ambientais, estuda subjetividade, é professora universitária, idealizadora do Canal de Podcast Mil-em-Rama e participante do projeto Conversas do Além-Mar.

Professora do Departamento de Ciências Humanas do INFES - UFF
Professora do Programa de Pós-Graduação em Ensino - PPGEn-UFF
Professora Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente - PPGMA-UFF

Instagram: @mil_em_rama
E-mail: maristelabarenco@gmail.com