artigo de margarida trincão
Nasci na terra
4 MIN DE LEITURA | Revista 34
Ter uma terra é um tesouro inestimável e imperdível. Eu nasci numa terra. Na casa grande, no quarto dos meus pais. Na casa onde cresci, na casa onde vivo.
Nasci neste pedaço de terra, numa pequena aldeia, banhada por um rio. É esta a minha terra e sempre será. Vivi longe, não tive medo da lonjura nem me senti desajustada pelas ruas largas, pelo buzinar constante, pelos prédios de colmeias… dezenas a viverem sob a mesma cobertura cujos nomes e, por vezes até os rostos eram desconhecidos. Não me assustava. Eu tenho uma terra, um pedaço de chão que me criou raízes, que me determinou o que sou e a forma como absorvi as vivências.
Angustiante sim, a ausência da noite. Na cidade não há noite. Uma luz amarelada encobre o ponteado de estrelas, a prateada Lua fica perdida no firmamento amarelo. Eu gosto da noite. Das sombras da noite… De olhar o céu e viajar pelos milhentos pontos luminosos que o povoam.
E todas as noites, esperava com a cara colada às vidraças que aquele manto amarelado se desvanece-se e permitisse que a luz de prata se impusesse. Mas eu tenho uma terra e em cada vinda matava saudades e recuperava da angústia que o manto amarelo me infligia. Com o passar dos anos fui-me habituando, mas nunca esqueci as cores e os sons da noite. Eu tenho uma terra.
Lá longe, não tão longe assim, as cores da noite transformaram-se em clarões de morte. Em silvos mortíferos… Em explosões… É ali ao lado. Milhares e milhares fogem da sua terra. Deixam tudo o que é seu. Tudo o que os fez crescer. Tudo o que são. Eu nunca vivi uma guerra.
Vejo os rostos crivados de dor. Não sabem dos seus. Não têm comida, água potável, um tecto… Há cidades mártires… Bombardeadas dia e noite… E intermináveis filas que a todo o custo e na maior das incertezas buscam um lugar onde possam viver em paz.
A criança de casaco às riscas que caminha sozinha… o velho casal em que gentilmente o homem de mão dada com a mulher a tenta ajudar a continuar… a mãe que chora levando sacos nas mãos e os filhos agarrados ao casaco… O soldado que se despede da mulher e do filho bebé que chora sem consolo… E o velho que se recusa a abandonar a sua casa. Não quer fugir, não quer ser estorvo para ninguém e é junto ao que é seu, onde sempre viveu, que quer ficar… a morte já não o assusta.
O rosto de uma mulher por quem já passaram várias décadas. Uma figura meã, envolta num casaco vermelho escarlate. Viveu a segunda guerra. Perdeu toda a família durante o conflito. Resistiu. Hoje ouve de novo as sirenes a avisarem de bombardeamentos. O som penetrante e metálico dos mísseis, as explosões, os mortos… O terror… Pela segunda vez na vida. As lágrimas secaram nos seus olhos. O seu rosto não demonstra a mínima tensão. Percebe-se que o sangue ainda lhe corre nas veias pelos olhos abertos. A serenidade é tão feroz quanto os gritos dilacerantes. Não sei se a senhora do casaco vermelho escarlate sabe que ainda vive.
Nunca vivi uma guerra. Não sei o seu sentir. Aqui, batendo nas teclas do computador sigo os noticiários, mas nada de me faz temer ouvir o som das sirenes. Não sei o que é uma guerra.
Lise Meitner, física austríaca (Viena, novembro de 1878 — Cambridge, outubro de 1968) petrificou quando lhe chamaram a “mãe da bomba atómica”. Ela era apenas uma física que trabalhou durante décadas com o químico Otto Hahn, mesmo depois de exilada na Suécia, para onde fugiu após a anexação da Áustria. Lise Meitner descobriu a fissão nuclear e em fevereiro de 1939 publicou na revista Natura, a explicação física sobre o processo. Provou que a divisão do átomo de Urânio (em átomos de Bário e Criptónio) liberta energia e neutrões, que por sua vez causam novas cisões atómicas, dando origem a uma série de cissões nucleares com libertação contínua de energia, num processo de reação em cadeia. Meitner reconheceu o potencial explosivo desse processo. Imediatamente esses resultados foram confirmados no mundo inteiro. A bomba atómica foi construída e lançada sobre Hiroshima e Nagasaki
Nos canais televisivos surgem os comentadores, os estrategas, os teóricos e a, para mim, incompreensível e aterradora, lógica da guerra. Aí não há lugar para quem morre… Há um delinear de estratégias, uma lógica intrínseca que os mandantes seguem… A contra-informação não tem metas… Sucedem-se os encontros diplomáticos… E Putin, bem protegido a avaliar pelo volume do casaco e da branca camisola de gola alta, fala para um estádio apinhado de russos…
Será que estamos perante a iminência da III Guerra Mundial? Não sei. Albert Einstein (Ulm, março 1879 – Princeton, abril de 1955) dizia: “Não sei com que armamento se combaterá a Terceira Guerra Mundial, mas a Quarta Guerra Mundial será combatida com paus e pedras.”
Sei que quando esta guerra acabar. Quando das ruas esburacadas nascerem corpos mutilados. Quando filhos sem pais esgravatarem no lixo à procura de comida. Quando nos passeios os velhos apodrecerem. Quando o cheiro fétido reinar nas fachadas bombardeadas… Virão os novos senhores até que nova sede de poder assole seres frios e imperturbáveis.
Quero acreditar no que Pablo Neruda afirmava: “Só um louco pode desejar guerras. A guerra destrói a própria lógica da existência humana”.
Só não sei o que é a lógica da existência humana. Do reino animal, dito irracional, julgo ser o instinto de sobrevivência. Da raça humana? Não sei.
Talvez quando voltarem aos paus e pedras de Einstein os homens se lembrem que têm uma terra. Talvez…
O rosto de uma mulher por quem já passaram várias décadas. Uma figura meã, envolta num casaco vermelho escarlate. Viveu a segunda guerra. Perdeu toda a família durante o conflito. Resistiu.
Margarida Trincão
Jornalista
Nasceu nos finais de setembro de 1955, na aldeia ribatejana de Lapas, concelho de Torres Novas. Ciosa das suas raízes rurais, foi na aldeia que aprendeu os ciclos da vida. O nascer e o morrer. O semear e o colher. Olha a floresta sem nunca esquecer que as frondosas árvores nasceram de uma pequena semente que um dia na terra germinou.
Formada em jornalismo pela Escola Superior de Meios de Comunicação Social, iniciou à sua actividade profissional nos semanários “O Jornal” e “Se7e”. Anos depois voltou para Lapas. Aí nasceram os seus dois filhos. Dedicou-se à imprensa regional. Há cerca de 16 anos que é directora do mensário abarca, sediado em Abrantes.
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